24 setembro 2006

Direito à Esperança

Vezes de menos sublinhamos qual é, em qualquer parte do mundo, a força motriz do/as migrantes. Subjugados por um olhar tecnocrático, quase ignoramos que o que o/a faz mover é, acima de tudo, a Esperança num futuro melhor, para si e para a sua família. Ainda que exista, em muitos casos, o impulso provocado pelo desespero, decorrente de condições de vida muito adversas, tal, por si só, não seria suficiente para o fazer mover. Só parte, quem acredita que pode encontrar uma oportunidade de dar outro destino a sua vida. E essa esperança é um direito fundamental de qualquer ser humano, pelo que devem existir canais legais de migração que funcionem efectivamente, ainda que as admissões possam ter um limite. O bloqueio a esse esperança constitui uma profunda injustiça de um mundo que se globalizou na livre circulação de capitais e (quase) de bens e serviços, mas que não o fez para as pessoas, deixando milhões presos na sua pobreza.

Esta reflexão vem a propósito do recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), com o título “Passagem para a Esperança” dedicado às mulheres migrantes.



Não terá sido seguramente por acaso que foi escolhido este título para o relatório. Elas, novas protagonistas decisivas dos movimentos migratórios, encarnam como ninguém esta esperança. Através do trabalho que lhes permita auferir rendimento suficiente para si e para a sua família, a que somam muitas vezes a possibilidade de escapar a círculos viciosos de subjugação familiar e social, têm na migração uma oportunidade extraordinária de dar um salto na sua vida.

Olhando então o movimento migratório de milhões de pessoas enquanto expressão do direito à esperança há que sublinhar três atitudes exigíveis às sociedades de acolhimento.

Como primeiro passo é fundamental termos uma atitude de quem sabe reconhecer e elogiar a Esperança de todo/as que partem em busca de uma vida melhor. Entre ele/as, está, normalmente, o que de melhor a Humanidade tem. A sua capacidade de luta e de iniciativa, a sua resiliência e a sua ambição, representam contributos preciosos para os países de destino. Veja-se, por exemplo, o efeito em países construídos essencialmente por emigrantes, como os Estados Unidos, a Austrália ou o Canadá. As suas economias, mas também as suas sociedades no global, beneficiaram extraordinariamente com essa força. Por isso, perante os que emigram, devemos saber reconhecer e elogiar a esperança de que são portadores e, perante os movimentos migratórios, perceber que o medo e a desconfiança não fazem sentido. Quem vem, vem pela esperança de uma vida melhor e não constitui ameaça. E isso torna-se mais fácil entender se soubermos reconhecer e elogiar a esperança que trazem.

Como segunda linha, deveremos potenciar e efectivar a Esperança. O choque à chegada ao destino migratório é, muitas vezes, violento e torna-se difícil manter acesa a esperança que o/a fez movimentar. O trabalho desqualificado, a burocracia infernal que enfrentam, a remuneração abaixo da praticada para nacionais, as atitudes de xenofobia e de racismo, a dificuldade de ver reconhecidas as suas habilitações académicas, são alguns exemplos dos obstáculos que encontram. Cabe-nos, por via de uma boa integração dos imigrantes, ajudar a desfazer estes bloqueios para que a esperança que trazem possa ser potenciada e realizada. As políticas de integração nos vários domínios sectoriais, desenvolvidas quer a nível público, quer a nível privado, devem dar essa resposta. A defesa do princípio da igualdade de direitos e deveres, mas também de oportunidades deverá inspirar todas as acções a desenvolver neste eixo.

Finalmente, porque nas migrações os riscos e as vulnerabilidades são grandes, devemos também saber proteger e restaurar a Esperança, quando esta está em perigo ou já se desfez. A exploração no trabalho ou na habitação, o tráfico de pessoas ou a discriminação étnica são contextos muitos hostis que muito/as imigrantes experimentam e que, eventualmente, podem matar toda a esperança que eram portadore/as. Torna-se, por isso, essencial que todo/as o/as migrantes tenham, não só toda a protecção jurídica dos seus direitos fundamentais, mas que possam dela beneficiar efectivamente. O seu acesso à justiça, a sua protecção pelo Estado de direito e suas instituições, bem como o apoio solidário da solidariedade civil, constituem, em momentos de crise, condições indispensáveis para proteger e restaurar a esperança de muito/as imigrantes.

Provavelmente, nada será mais essencial ao futuro da Humanidade do que a Esperança. Aproveitemos, portanto, os seus principais portadores – a/os imigrantes - que desde que partem da sua terra natal, até que a ela regressam não fazem mais do que dar corpo à sua esperança.

(Editorial do BI Acime, Outubro)

Diálogo de surdos?

Nos dias 14 e 15 de Setembro, em Nova Iorque, realizou-se pela primeira vez no âmbito das Nações Unidas, uma relevante iniciativa designada “Diálogo de Alto Nível”, dedicada ao tema “Migrações e Desenvolvimento”.



Cerca de 190 países, na sequência do trabalho desenvolvido por Peter Suterland, representante especial do Secretário-Geral, e do Grupo de trabalho sobre migrações internacionais (ver link), reuniram-se em torno desta magna questão. Num formato condicionado pela necessidade de acomodar mais de 100 intervenções em dois dias, assistiu-se essencialmente, não a um verdadeiro diálogo, mas a uma centena de monólogos. Embora seja verdade que em todos os discursos foram evidentes pontos comuns (importância das remessas, imigração circular, win-win model, drenagem de cérebros,..) e que não se verificaram polémicas significativas, não é menos verdade que esse consenso decorre mais da inconsequência prática da iniciativa do que de avanços significativos. Mesmo a ideia nova lançada pelo Secretário Geral no seu discurso de abertura – o Forum Global Migrações e Desenvolvimento – recolheu um número significativo de apoios, mas quase todos eles descomprometidos, remetendo este novo projecto para uma função de troca de experiências e de partilha de boas práticas e nada mais. Do lado da oposição a este iniciativa, protagonistas de peso como os Estados Unidos ou a Austrália fizeram-se ouvir. Por uma e outra razão, não se augura grande futuro para o Forum que terá, aparentemente, a sua primeira sessão em Janeiro, na Bélgica. De qualquer forma, ainda assim, foi importante ter sido realizado este Diálogo de Alto Nível, nomeadamente pelo agendamento do tema enquanto prioridade global.

É evidente que as dificuldades são – e vão continuar a ser - muitas. Desde logo, porque a ferramenta essencial das Nações Unidas nesta área – a Convenção para a protecção de todos os migrantes e suas famílias – apesar de ter sido aprovada em Assembleia Geral em 1992, não reúne mais do que trinta ratificações e todas elas de países de origem. Nenhum país de acolhimento de imigrante a ratificou e não se vislumbra que a situação se altere. Como é possível avançar, se se verifica esta situação esquizofrénica de uma Convenção das Nações Unidas aprovada que é letra morta e jamais ressuscitará? Por outro lado, nenhum Estado quer abdicar da sua total soberania na gestão das migrações, embora todos afirmem simultaneamente que nenhum Estado é suficiente, por si só, para fazer face a esta questão e que os países de origem, trânsito e destino devem cooperar e gerir conjuntamente esta realidade? Mas, então, como fazer?

O horizonte não é, portanto, brilhante. Apesar disso, é impossível desistir. Temos que encontrar, através de pequenos passos, patamares que tornem a Era da Mobilidade mais harmónica e justa, com efectiva protecção dos migrantes, bem como com saldo positivo para os países de origem e de destino dos fluxos migratórios. Para isso, é bom ter consciência que um conceito muitas vezes repetido – a coerência de políticas - é fundamental. Da mesma maneira que nenhum país pode resolver, por si só, a gestão das migrações, a existência de políticas contraditórias (ou não convergentes) nas áreas do comércio internacional, do co-desenvolvimento, da segurança e do diálogo intercultural e inter-religioso só tornarão cada vez mais intricado este fenómeno das migrações. Aí se revelarão, com gravidade crescente, todas as consequências de erros nas outras políticas. E paliativos não serão suficientes enquanto na raiz os problemas persistirem.

Novos rostos na publicidade


O Millennium BCP na sua recente campanha de publicidade, destinada ao mercado nacional, convidou Sara Tavares para protagonista de uma campanha de publicidade de crédito à habitação no valor de 3 milhões de euros. Não é a primeira vez que campanhas de publicidade de grandes empresas nacionais mobilizam figuras provenientes das comunidades imigrantes, seja os de 1ª geração, sejam os seus descendentes. Recentemente a Netcabo fez o mesmo com Francis Obikuwelu para promover uma ligação internet de alta velocidade e a Vodafone, fez idêntica opção com os Kusundulola. Estas opções representam um excelente contributo, ainda que indirecto, para a integração das comunidades imigrantes, por via da referenciação positiva de protagonistas dessas mesmas comunidades, naquilo em que são excelentes, num discurso vocacionado para todos os portugueses. Não se trata, note-se bem, de utilizar estes protagonistas em campanhas para dentro das comunidades. Isso seria banal. O importante foi torná-los, por via do seu papel central em discursos publicitários de mainstream, parte integrante da sociedade portuguesa. Ainda bem que é assim.

Ministros holandeses demitem-se

Os ministros holandeses da Justiça e da Habitação demitiram-se na sequência das graves falhas apontadas aos seus serviços pela Comissão de inquérito que investigou a morte de 11 imigrantes irregulares que estavam detidos no Aeroporto de Amsterdão. Este facto, que passou quase despercebido nas notícias, é particularmente relevante. As falhas na segurança nas instalações e no accionamento eficaz dos meios de socorro necessários evidencia, no mínimo, um desprezo e, eventualmente, um tratamento desumano aos imigrantes irregulares que aguardavam repatriamentos após tentativas frustadas de entrada na Holanda. «Teria havido menos vítimas, ou mesmo nenhuma, se a segurança contra incêndios tivesse mobilizado a atenção das autoridades envolvidas», refere o relatório, apresentado em Haia pelo presidente do Conselho de Investigação de Segurança, Pieter van Vollenhoven, conhecido especialista na área.

Mais uma crise provocada pela temática da imigração, no governo demissionário da Holanda, depois da queda do actual governo também ter sido provocada por uma polémica em torno da anulação pela Ministra da Imigração e Integração da atribuição de nacionalidade a Hirsi Ali, conhecida personalidade de origem somali que havia protagonizado conjuntamente com Theo Van Gogh uma polémica com radicais jihadistas. Ainda assim é notável que tenha havido coragem por parte do sistema político holandês de ter realizado um inquérito sério a uma situação grave e delicada – a morte de imigrantes à guarda do Estado holandês – e dele se retirarem as devidas consequências.

02 setembro 2006

Uma mesa com lugar para todos


De imediato, perante a metáfora de “uma mesa com lugar para todos”, usada no contexto das migrações, sobrepõe-se a qualquer outro raciocínio, o medo da “invasão” e uma leitura física do afundamento da nossa “jangada de pedra”. “Como seria possível ter lugar para todos, se somos um pequeno país, pobre e sem sequer ter comida para todos os que aqui estão?” exclamamos de imediato. “.... lá vem mais uma teoria bem intencionada, mas totalmente irrealista”, dirão alguns! “Poesia”, dirão outros!

Por um momento, conceda-nos o leitor, uma oportunidade para ir mais além deste pensamento óbvio.

Não é de “poesia”, nem de boas intenções que falamos. É da razão de ser Humano e, para os mais egoístas, de questões de sobrevivência.

Olhando à escala global, se não formos capazes de construir um Mundo que tenha lugar à mesa para todos, não teremos - nem mereceremos – futuro. Inexoravelmente, numa questão de tempo, estaremos à beira do precipício, empurrados pela injustiça e pelo sofrimento humano dos que não têm lugar à nossa mesa.


Por mais que pareça, ter lugar para todos na mesa não é uma tarefa impossível. A Natureza e o génio humano são capazes de gerar e de gerir o necessário para que todos tenham o suficiente. E não nos satisfaçamos com o argumento fatalista que “pobreza sempre houve” ou “está lá longe e nada podemos fazer”. Ou pior ainda, com a atitude desculpabilizante que “se ela existe é culpa de alguém: dos pobres que não sabem sair dela ou dos ricos que a constróem sob os pilares dos seus palácios”. Um e outro pensamento soam a justificação barata. Tenhamos coragem de ir mais fundo e mais longe.

Para tornar o Mundo uma mesa para todos, as migrações são essenciais e naturais. São o mecanismo mais próximo e eficaz de repartir a riqueza e de criar vasos comunicantes. São o despertador das nossas consciências e as batidas à porta da nossa indiferença. São o apelo à generosidade, sem sairmos de casa.

É o dar e ainda receber mais. É multiplicar, dividindo.

Por isso, saber abrir a nossa mesa a outros, que nos procuram em busca do seu futuro, é participar activamente nesse movimento universal de fazer do Mundo um destino comum e partilhado.

Por outro lado, este conceito tem também – no “todos”- a riqueza da diversidade, afirmada na unidade da “mesa”. As migrações trazem-nos sempre a alegria de uma mesa mais diversa, cheia da sabedoria própria de cada um, pronta a dividir entre todos. Basta que o queiramos e saibamos fazer, num ambiente de diálogo e de partilha, tão característicos de uma boa mesa.

Assim, cada um com o seu contributo, à mesma mesa, chegaremos a construir um futuro de todos e para todos. Com os de dentro e os de fora. Com os mais iguais e os mais diferentes. Mas sempre com o direito universal de estar à mesa. E sempre com o dever de convidar todos para a mesa.

Precisamos mesmo de lutar por uma mesa com lugar para todos....

12 julho 2006

Diferenças que acrescentam - em defesa do bilinguismo

Poucas matérias geram, nas políticas de imigração, um debate tão intenso quanto o bilinguismo na educação dos descendentes de imigrantes. Divididos entre uma língua materna, com que convivem diariamente em casa, e a língua do país de acolhimento, onde vão ter que vingar, estas crianças são empurradas para uma certa “esquizofrenia” linguística que muito os perturba. Desde logo, porque percepcionam, no seu contexto envolvente, uma resistência à manutenção da sua língua materna, sobretudo quando se trata de um crioulo. Quer os pais, quer os educadores, partem do principio que só rejeitando a língua materna poderão aprender convenientemente a língua de acolhimento. Ora é esse pressuposto que se quer discutir neste projecto de educação para o bilinguismo.

É hoje assumido que o domínio de várias línguas representa uma vantagem competitiva num mundo global. Tem-se verificado mesmo a expansão ao primeiro ciclo do ensino de uma língua estrangeira – o inglês – por se reconhecer que tal opção traz evidentes vantagens para a educação das crianças. É certo que esta defesa se sustenta na vantagem futura de mobilidade e no potencial de sucesso profissional que muitas línguas maternas podem não ter. Também é evidente que esta aprendizagem de uma língua estrangeira não tem o mesmo impacto e complexidade que a manutenção de uma língua materna não coincidente com a do pais de acolhimento.

Ainda assim, importa ter consciência que a manutenção da língua materna garante, para estas crianças, um outro valor – igualmente relevante – representado pela manutenção de um vínculo positivo às origens familiares, valorizando-as e não as escondendo. Ninguém pode ser plenamente, anulando a sua história pessoal e familiar.
Neste sentido, o reconhecimento do valor académico de língua(s) materna(s) que têm “baixo estatuto social” é um contributo inestimável para a valorização identitária da própria comunidade de falantes.

É indiscutível que esta opção de fazer conviver duas línguas – a materna e a do país de acolhimento – levanta desafios de didáctica e de pedagogia, exige uma resposta diferenciada do sistema em relação a estas crianças e dá mais trabalho. Mas, cremos, os resultados serão mais positivos do que os produzidos pela solução castradora de anular a língua materna.

Há, portanto, que fazer um esforço consistente para que estas crianças aprendam bem a língua do país de acolhimento, para que aqui possam ter sucesso e obter plena integração, num quadro de igualdade de oportunidades em relação aos autóctones. Mas em simultâneo, e com igual empenho, há que valorizar a sua língua materna, vendo-a como uma vantagem e como um recurso cognitivo e não como um obstáculo no processo de aprendizagem.

Finalmente, esta abordagem reflecte a convicção da viabilidade da múltipla pertença, sem que tal queira dizer pertença incompleta a qualquer dos referenciais ou pertença contraditória. Não precisamos de viver num mundo de “ou”. Cada vez mais necessitamos de “e”. Num contexto de construção de uma sociedade intercultural, a defesa do bilinguismo tem todo o sentido e representa uma expressão concreta de respeito pela diversidade. Proporciona a cada uma destas crianças, descendente de imigrantes, a possibilidade de, simultaneamente, se sentir com um lugar pleno na sociedade de acolhimento e de manter o vinculo às origens. Essa dupla pertença, se bem gerida, representa a melhor via para uma identidade equilibrada e enriquecida, feita de diferenças que acrescentam.

11 julho 2006

Responsabilidade individual e familiar dos imigrantes

Uma das mais notáveis figuras políticas actuais do mundo lusófono é, indiscutivelmente, o Ministro Vítor Borges, responsável pela pasta dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do Governo de Cabo-Verde. As suas intervenções públicas recentes, quer na Cidade da Praia, quer em Lisboa, mostraram uma sagacidade e um sentido político que vão muito além dos formatos conhecidos e pouco ousados, arriscando um discurso desalinhado e “politicamente incorrecto”.

Uma das dimensões mais marcantes do discurso de Vítor Borges é a assunção plena da importância da responsabilidade individual e familiar dos emigrantes – cabo-verdianos, no caso, mas aplicável a todas as comunidades – quer em relação à sociedade de origem, quer à sociedade de acolhimento. Ao invés de um discurso permanentemente desresponsabilizante e de vitimização constante que normalmente se ouve, Vítor Borges defende que, em grande medida, está nas mãos de cada imigrante e da sua família a determinação do seu futuro e que este depende de um apurado exercício de responsabilidade pessoal e familiar. Esta voz deve ser ouvida com muita atenção.

Com humildade, mas também com a autoridade moral de quem consome todos os seus dias na defesa intransigente dos direitos dos imigrantes na sociedade portuguesa, queremos juntar a nossa voz à do Ministro dos Negócios Estrangeiros cabo-verdiano. Se é fundamental - e continuaremos a fazê-lo sem esmorecimento, nem desistência – lutar contra todas as formas de discriminação e de xenofobia, importa também reforçar a afirmação da responsabilidade individual de cada imigrante, no cumprimento dos seus deveres para com a sociedade. Esse exercício reflecte-se seja no convívio de proximidade, no integração escolar, na protecção dos espaços públicos, na civilidade da gestão do ruído, na solidariedade para com a toda a comunidade, entre outros aspectos. Não devemos deixar-nos arrastar para uma visão perigosa que o contexto de desigualdade e de injustiça que muitas vezes atinge os imigrantes, justifica da sua parte uma imunidade às responsabilidades pessoais e sociais. Se é verdade que, algumas vezes, essa dinâmica de exclusão explica atitudes de irresponsabilidade e até violência, nunca as justifica. Nunca.

A força da razão e o justo capital de queixa não dispensam o exercício da responsabilidade individual de cada cidadão imigrante. Só dessa forma não se perderá toda a razão e se conquistará um lugar pleno na sociedade. Aliás, os extraordinários exemplos – a imensa maioria – de imigrantes e seus descendentes que, mesmo em contextos muito adversos, conseguem alcançar os seus objectivos, num quadro de exercício de responsabilidade individual e familiar, é disso evidência. Mas essa constatação só serve de reforço para esta afirmação: cada imigrante tem uma responsabilidade social a cumprir.

Quisemos incluir também nesta reflexão a responsabilidade familiar. Os progenitores imigrantes são, normalmente, verdadeiros heróis em busca de um futuro melhor para os seus filhos. Procuram incessantemente dar-lhes uma vida diferente daquela que tiveram. Não regateiam sacrifícios, trabalhando horas sem fim, em condições normalmente muito adversas, para lhes poderem proporcionar esse destino diferente. Mas essa opção tem, algumas vezes, um preço elevado a pagar, o mais elevado dos quais é a ausência da função educadora de país. Tal como muitas outras famílias não-imigrantes preocupam-se com dar “coisas”, mais do que dar educação. Esta exige presença, diálogo e acompanhamento dos filhos onde os pais são insubstituíveis.

Também o nosso Presidente da República, nas comemorações do dia 10 de Junho, reforçava este apelo ao exercício da responsabilidade individual por parte de todos os portugueses sublinhando que “Ser independente é ser responsável. E a responsabilidade implica ter uma noção clara e exigente dos direitos, mas também dos deveres, colectivos e individuais, sem o que a exigência e as críticas não serão respeitadas como devem ser”. E na mesma linha de raciocínio apelava à responsabilidade de recebermos bem os imigrantes que nos procuram: “Temos, além disso, o dever de acolher e integrar os que, no respeito das leis do País, nos procuram como nova fonte de esperança e oportunidade, os imigrantes que chegam de outros países dispostos a lutar por uma vida melhor. Temos de pensar a República como uma comunidade de destino e de futuro, feita de cidadãos livres e responsáveis.”

A concretização deste desafio de exercício da responsabilidade individual e familiar é o que fará de todos nós - imigrantes e não-imigrantes - cidadãs e cidadãos livres, respeitados e construtores de uma comunidade de destino, onde todos, sem excepção, tenhamos lugar. É necessário estar à altura dessa missão.

15 junho 2006

O "pseudo-arrastão" de Carcavelos - Uma verdade por repor

Um ano depois dos acontecimentos na praia de Carcavelos, aos quais se convencionou chamar “arrastão” e após todos os relatórios e esclarecimentos públicos permanece, para muitos, a convicção que, no dia 10 de Junho de 2005, se realizou um gigantesco assalto em Carcavelos, conduzido por 500 jovens negros, vindos de bairros degradados.

O erro mediático em torno dos acontecimentos de Carcavelos foi grave. A partir de uma notícia falsa, reforçou os preconceitos e a desconfiança face a uma população de jovens descendentes de imigrantes africanos, consolidando o estigma já existente que os relaciona com a criminalidade.

Não se julgue, no entanto, que neste processo os culpados são só os jornalistas. A culpa reparte-se, ainda que em proporções diferentes, por todos nós: pelas fontes policiais e populares que induziram os jornalistas em erro; pelos jornalistas que foram difusores de uma notícia falsa que nunca desmentiram com o mesmo destaque, pelos políticos que a comentaram sem cuidar de a verificar convenientemente e, finalmente, pelos espectadores e pelos leitores que ainda hoje continuam a acreditar no “pseudo-arrastão”.

Mas, nesta ocasião, importa focar a reflexão sobre a responsabilidade dos jornalistas.

Coloca-se, neste processo, entre outras questões, uma relevante discussão da relação dos jornalistas com as fontes. Segundo a LUSA , a fonte da qual partiu a informação para a construção da notícia foi a PSP. Colocar-se-ia, desde logo, a necessidade de exercer sobre a informação um sentido crítico de avaliação da credibilidade e da consistência. Admite-se que nos “directos”, em cima do acontecimento, não existissem condições de distanciamento e de reflexão crítica perante tal informação. Mas já é mais difícil explicar que, nos dias seguintes, quase ninguém tenha questionado esse facto, sobretudo quando um acontecimento de tal magnitude gera somente quatro detenções e dois feridos (todas resultantes de agressões a agentes da autoridade ou de acções destes) e uma (!) queixa de furto.

No dia 16 de Junho, a mesma fonte vem corrigir os dados iniciais dizendo que: " De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícitos". E mesmo este suposto número de participantes continuava a não ser consistente com uma só queixa apresentada. é Obviamente dá-se, neste contexto, uma situação jornalisticamente relevante: uma fonte reconhece que errou (sublinhe-se, aliás, que é o único protagonista neste processo que reconhece o erro e por ele se penitencia). Logo, o jornalista/meio de comunicação deveria, com igual destaque da noticia anterior, comunicar o erro aos seus leitores e, se possível, justificá-lo, bem como elaborar um pedido de desculpas, em primeiro lugar, aos visados, mas também ao público em geral. Este desmentido ocupava, nalguns casos, uma escassa coluna, não tendo qualquer destaque especial e pedido de desculpas nunca houve.

Com efeito, ao contrário do que depois se quis fazer crer, este erro não é pouco importante. Nesses acontecimentos, foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, protagonizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número, avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque “vi na televisão” - consolidou definitivamente este “facto”.

Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, “a repetição substitui a verificação”. Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deveriam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com uma preocupação da procura aprofundada da verdade. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.

Como segundo erro particularmente grave, a utilização abusiva, ainda que involuntária, de imagens que foram apresentadas como sendo do “arrastão”. A PSP, segundo relato da LUSA, esclarecia em 16 de Junho de 2005: "Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres". Ou seja, operou-se uma manipulação gravíssima através das fotografias publicadas, fazendo crer que se tratava de imagens do arrastão, quando, segundo este responsável da PSP, eram pessoas a fugir da chegada da polícia. Como foi isto possível? Hoje é conhecida a autoria das referidas fotos e respectivas legendas: não é de um fotógrafo-jornalista, obrigado a um código de ética, mas sim de um “cidadão-jornalista” que as produziu e legendou como quis, fornecendo-as a meios que as consumiram sem cuidado. Esse facto deveria merecer uma reflexão séria sobre a credibilidade do “cidadão-jornalista”.

Mas o erro mais grave que perdura no tempo é o erro de não corrigir os erros. E aí estaremos perante uma das maiores dificuldades da cultura jornalística dos nossos dias e uma das ameaças que impende sobre a credibilização desta actividade.

Importa, como já foi dito, reforçar que se deve recusar a visão simplista de culpar os jornalistas de tudo. É uma leitura básica e injusta. Muitos são os condicionalismos que limitam o trabalho jornalístico (tempo, espaço, fontes, concorrência, ..) e, nesse contexto adverso, muitos são os jornalistas que fazem um trabalho sério e profissional, no qual não estão, no entanto, isentos de erro. É a sua capacidade de autocrítica e a auto-regulação que pode prestigiar e continuar a dar-lhes um papel central nas democracias contemporâneas. Ao invés, se essa capacidade se anula e se se escudam numa lógica defensiva corporativa que não reconhece erros, os jornalistas e os meios deixam de cumprir a sua missão. E sobre o “pseudo-arrastão” ainda não os ouvimos pedir desculpa.

(Público, 12 Junho 2006)

14 junho 2006

Uma oportunidade para uma Lei melhor

Há um consenso alargado que o actual enquadramento legal da entrada, permanência e saída e afastamento de estrangeiros de Portugal – vulgo lei da imigração – é deficiente. Longe de viabilizar a imigração legal, quer porque burocratiza infernalmente a vida dos empregadores e dos candidatos a imigrantes, quer porque afasta da legalidade muitos imigrantes que já haviam estado legais, esta lei não serve os interesses de ninguém. Mesmo os esforços em sede de regulamentação, que procuraram abrir algumas portas que a lei tinha fechado, não se revelaram suficientes e os resultados ficaram muito aquém do desejável.

Apesar de não ser boa política a mudança recorrente das leis, visto que essas alterações causam instabilidade e confusão, não é sensato manter tudo na mesma, quando manifestamente a lei se tornou num pesadelo. É o caso actual.

O actual Governo, depois de uma avaliação detalhada, veio propor uma nova proposta de lei da imigração. Saúda-se, desde já, a coragem de mudar o que está mal, bem como a proposta de colocar em discussão pública a proposta, num quadro de incentivo à participação e co-responsabilidade de todos na construção do novo modelo.

Esta abordagem deve ter como correspondência uma ampla participação no debate público, por parte de todas as associações de imigrantes, ONGs, paróquias, sindicatos, empregadores e outros actores sociais que interagem com a questão da imigração. Os seus contributos, apresentados em clima de cooperação madura e responsável, podem representar uma mais-valia no aperfeiçoamento da nova lei e uma desejável apropriação de um enquadramento jurídico em que todos - ou pelo menos uma ampla maioria – se revejam.

A política de imigração, nos dias que correm, é para qualquer país europeu um tema complexo, rico em contradições e cheio de inquietações. Ocupa o topo da agenda pública e merece toda a atenção política. Na sua gestão, há abordagens diferentes, entre as quais se destacam opções arrogantes e parciais que, atrás de um qualquer populismo, servindo-se de todas as demagogias, fazem desta questão uma arma de arremesso e de combate para outras guerras. Esse é um caminho errado e perigoso.

Evitar a todo o custo que a política de imigração se torne em Portugal uma causa fracturante - como o é noutros países – é uma das “regras de ouro” que prosseguimos incansavelmente. A procura constante de respostas eficientes e adequadas, bem como de plataformas consensuais onde convirjam a maioria dos cidadãos representa o melhor serviço aos imigrantes e a Portugal. Uma das condições essenciais para que se mantenha esse consenso na sociedade portuguesa passa, seguramente, pelo exercício de participação cívica na reforma legislativa que se avizinha. Temos ao nosso alcance a oportunidade de dispor de uma Lei melhor, que será tanto melhor, quanto mais corresponda a um resultado de uma reflexão colectiva alargada, onde todos participem. É esse o desafio que hoje importa reforçar.

(editorial BI Junho)

09 maio 2006

Contra o jornalismo “encaixado*”

A segunda guerra do Iraque trouxe para a discussão sobre os media a nova tendência do “embedded journalism”. Acompanhando a invasão, “encaixados” entre as tropas americanas, alguns jornalistas reportaram então a guerra, a partir desse ponto de observação. Muitas foram as vozes críticas quanto à independência e ao rigor desta cobertura jornalística, pela sua proximidade excessiva a uma das partes e à sua estratégia de comunicação (ironicamente apelidado por alguns como in-bedded journalism).

A tendência desenvolveu-se, nomeadamente, através da sua extensão a operações das forças de segurança e de inspecção. Em Portugal, as recentes coberturas mediáticas da acção policial no Bairro da Torre, em Camarate, ou das sucessivas presenças de jornalistas em acções de inspecção alimentar e económica, são os exemplos mais actuais desta tendência.

Este tendência é perversa, quer para o Estado, quer para os media.

Ao incluir jornalistas nas suas operações, ainda que com o objectivo bem intencionado de dar a conhecer à comunidade as capacidades de acção das polícias ou das autoridades inspectivas para gerar confiança e simpatia, ficam criadas todas as condições para um enviesamento da acção a desenvolver, que passa a ter na presença de jornalistas um elemento essencial de condicionamento. Mais adiante, já em plena acção, a presença de jornalistas causa nos agentes uma pressão adicional para obtenção de resultados: há que corresponder à expectativa o que pode levar a um excesso de zelo, motivado não pelo cumprimento da lei, mas pela correspondência ao objectivo mediático da missão.

Mais relevante ainda, a perspectiva dos interesses do Estado, é que a cobertura, em tempo real, de acções policiais ou de inspecção por jornalistas, conduz a uma “espectacularização” destas operações, com a sua transformação inaceitável em reality shows, não compatível com a dignidade das funções do Estado. Por outro lado, a tentação dos agentes do Estado em configurar as suas acções de investigação e segurança em função do seu agendamento mediático, representa um entorse à sua missão e uma potencial infidelidade à justiça, que não se deveria mover por esse critério mediático.

Na perspectiva dos media, se é certo que estas operações contêm todos os ingredientes para elevada noticiabilidade, gerando por certo audiências significativas, - razão pela qual são tão atractivas – a participação nelas tem o seu preço. Por exemplo, do lado da fonte, convidam-se jornalistas para operações com uma razoável expectativa de sucesso, seguramente acima da média. Ninguém convida jornalistas para operações com risco de insucesso. É o primeiro enviesamento. Por outro lado, todas estas coberturas têm regras pré-estabelecidas (censura pré-aceite?) pela fonte oficial que o jornalista é obrigado a aceitar, enquanto regra do jogo. Finalmente, a reportagem neste contexto está estreitamente ligada à fonte oficial, transmitindo instantaneamente a informação que esta quer divulgar; não há espaço para ouvir a outra parte, que, sendo objecto de uma acção policial ou inspectiva, é obrigatoriamente vista como “suspeita” e situada no “outro campo”. Quando o “outro campo” é um colectivo – um bairro, uma comunidade, uma etnia – a generalização deste rótulo tem um relevante efeito estigmatizador sobre todo o colectivo, ainda que os potenciais prevaricadores sejam uma ínfima minoria. O efeito é arrasador e mesmo a ausência de resultados policiais ou da inspecção não anula a suspeição entretanto difundida e ampliada pela presença dos jornalistas nestas operações.

Por isso, o jornalismo “encaixado” é, deontologicamente falando, perigoso. Perigoso para a independência e para o rigor. A sua recusa deveria ser a regra. Mas também as instituições públicas deveriam saber recusar esta via. Ainda que seja teoricamente positiva a intenção de reforçar a imagem das forças de segurança e de inspecção, a dignidade das funções do Estado não se compagina com o preço a pagar pela mediatização da sua acção.


* tradução possível de “embedded”

07 maio 2006

Inovação e respeito cultural




Enquanto em vários contextos, com grande destaque para França, se faz do combate ao véu islâmico uma causa de Estado, proibindo o seu uso fora do espaço privado, o ACNUR e a Nike desenvolveram um projecto inovador – Together for girls - onde, respeitando a cultura e a tradição islâmicas, se criou uma linha de equipamentos desportivos adaptados a esse referencial. Recusando partir de uma posição de superioridade cultural e de crítica apriorística, uma equipa da Nike partiu para esta missão no Quénia, nos campos de refugiados de Dadaab, onde se encontram muitas mulheres somalis, que usam como vestuário uns largos véus. Procurando conhecer e compreender as tradições e tendo também as condições atmosféricas, a equipa criativa da Nike desenvolveu equipamento desportivo que permite, sem rupturas culturais, que as jovens deste campo de refugiados joguem voleibol. O que não deveria constituir surpresa é, infelizmente, uma novidade. Fica, no entanto, provado que há uma via possível para a construção de soluções e para novos passos a dar no diálogo intercultural. Desde que cada parte deixe de lado a intolerância...

02 maio 2006

Europe and its immigrants in the 21st century: a new deal or a continuing dialogue of the deaf?



Numa edição conjunta da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e do Migration Policy Institute, de Washington, acaba de ser editado, sob a coordenação de Demetrios Papademetriou, uma colectânea de textos muito actuais com o título Europe and its immigrants in the 21st century: a new deal or a continuing dialogue of the deaf?
Trata-se de onze peças importantes para entender os desafios que se colocam à Europa no domínio da gestão das migrações, adoptando dois eixos essenciais de análise: a integração e a migração económica e laboral.

Destaca-se ainda antes desses dois grandes capítulos, uma Introdução de Papademetriou, escrita a pensar nos decisores políticos que, duma forma sintética, organiza as principais questões que se colocam na gestão das migrações, na perspectiva dos países de acolhimento.

Na esfera da integração, Sarah Spencer enuncia os grandes desafios para a Europa e Rinus Penninx procura reter as lições aprendidas nas diferentes experiências de integração. Sublinhando a importância da cidadania nesta dinâmica, Alexander Aleinikoff propõe-nos a sua perspectiva, enquanto Jorge Gaspar e M. Lucinda Fonseca (é de saudar a presença de autores portugueses nesta colectânea) avançam com propostas para a construção de uma política urbana na nova era das migrações. Destacando uma das vantagens da parceria FLAD/MPI, Maia Jachimowicz e Kevin O´Neil fazem a ponte com a experiência norte-americana de integração de imigrantes.

Na segunda metade da obra, em que o foco repousa sobre as questões das migrações económicas, tem particular destaque um artigo de D. Papademetriou e K. O´Neil onde se faz uma resenha muito útil sobre os diferentes modelos de selecção de imigrantes, destacando os respectivos pontos fortes e fracos. A sua leitura é absolutamente essencial. Ainda neste eixo são abordados temas como a contribuição da imigração para a demografia europeia (W. Lutz e S. Scherbov) o novo papel dos imigrantes nas economias rurais do sul da Europa (C. Kasimis), bem como a provocativa interrogação sobre se “a imigração é inimiga do welfare state? (G. Brochmann).

Recomendado. Para aquisição informe-se junto da FLAD (fladport@flad.pt)

24 abril 2006

Três mensagens das Ilhas

No meio do Atlântico, em Cabo-Verde e nos Açores, tiveram lugar durante o último mês, três relevantes acontecimentos, no âmbito das políticas de imigração.

1.A cooperação pais de origem/país de acolhimento para a boa gestão das políticas de migrações.

Incluída no programa da visita oficial do Ministro dos Negócios Estrangeiros português a Cabo-Verde, foi criada, entre os dois governos, uma Comissão Conjunta para as questões relacionadas com a imigração cabo-verdiana em Portugal. Incluindo representantes de vários ministérios e da sociedade civil, esta opção estratégica corporiza a mais moderna abordagem da gestão das migrações. Esta inclui, obrigatoriamente, a parceria “país de origem/país de acolhimento” na procura de soluções para os desafios das migrações. Sem permitir que nenhuma das partes se desresponsabilize, este modelo de cooperação permite fazer convergir esforços comuns e ajuda a criar uma melhor compreensão dos esforços e das dificuldades de cada parte.
Como prova adicional da maturidade desta abordagem, na agenda estiveram essencialmente questões de integração, ficando a gestão dos fluxos reduzida à sua importância específica. Habitação, descendentes, protecção social, participação política, ligação à sociedade civil, acesso à nacionalidade foram alguns dos tópicos abordados na Comissão conjunta e que merecerão um progressivo aprofundamento nos próximos meses. Foi possível, neste contexto, trocar informações e pontos de vista com ganhos evidentes.
A comunidade cabo-verdiana em Portugal é uma das mais antigas e das mais relevantes, quer pela dimensão, quer pela qualidade do seu contributo para a vida portuguesa. Com cerca de 64.000 imigrantes e, provavelmente, outros tantos cidadãos com dupla nacionalidade (portuguesa e cabo-verdiana), esta comunidade beneficia assim de uma abordagem piloto que pode vir a configurar um modelo de cooperação bilateral a explorar com outros países de origem. Importa agora dar conteúdo concreto a esta abordagem de vanguarda e estar à altura das expectativas.

2. A importância das diásporas no desenvolvimento dos países de origem

Quase em simultâneo com a primeira reunião da Comissão Conjunta, reuniu-se na cidade da Praia, o IVº Congresso de Quadros Cabo-verdianos da Diáspora. Com uma periodicidade quadrienal, este evento reúne a “nação diasporizada”, ou a “nação global”, em três dias de discussão e reflexão. É um momento impressionante, com a presença de quadros cabo-verdianos provenientes de vários países, mas profundamente interligados na relação à terra-mãe. O tema escolhido para este Congresso foi particularmente significativo: “A diáspora e o desenvolvimento de Cabo-Verde – Um desafio de cidadania”. Este sentido de compromisso com o país de origem, indo muito além da questão das remessas – que no caso cabo-verdiano atingem cerca de 17% do PIB – foi sendo evidente ao longo dos trabalhos. Inspirados pelas brilhantes intervenções iniciais do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo-Verde, Dr. Vítor Borges, e do Dr. António Vitorino, os congressistas percorreram um roteiro sobre migração e desenvolvimento onde a recusa da auto-vitimização, a mobilização em função da dignidade da cabo-verdiana e da sua resiliência a contextos hostis, bem como a aposta na educação/formação das novas gerações, foram eixos sempre presentes. Cruzando campos como o associativismo, as segundas gerações e as empresas produziu-se, ao longo desses dias, pensamento e propostas de acção. Para quem esteve como observador, percebeu um pouco melhor porque Cabo-Verde é um caso único. A sua graduação recente ao grupo dos países de desenvolvimento médio, abandonando o grupo dos mais pobres, a sua classificação com o 4ª pais mais desenvolvido da Àfrica sub-sariana, ou ainda um discurso político que tem como ponto de honra o cumprimento integral do serviço da dívida pública - quando a esmagadora maioria dos países pobres se centra no perdão da dívida – tudo isto numa terra sem quaisquer recursos naturais, mostra bem de que qualidade de povo estamos a falar.

3. Associações de Imigrantes e a Agenda dos Açores

Numa ocasião igualmente histórica, realizou-se pela primeira vez o Forum de Organizações representativas de imigrantes, em Ponta Delgada, nos Açores. Organizada excepcionalmente pela Associação de Imigrantes dos Açores, com grande mérito do seu presidente, Dr. Paulo Mendes, a da sua equipa, este evento reuniu mais de 60 associações, o que corresponde a 2/3 do universo total de associações reconhecidas pelo ACIME. Com um programa rico e equilibrado entre conferências e tempo de trabalho em grupo e debate, os líderes associativos provaram que a política de imigração de Portugal faz bem em contar com o seu contributo que é cada vez mais indispensável. Com seriedade e enorme maturidade, foram capazes de avançar com uma agenda concreta que se constitui como um estimulante desafio a toda a sociedade portuguesa. Sempre acreditámos que uma boa política de acolhimento e integração de imigrantes só é possível com a participação activa e substancial da sociedade civil, em particular das associações de imigrantes. Com o Forum dos Açores, tornou-se ainda mais evidente que esse é o caminho certo. Respeitando as especificidades próprias de cada campo – Estado e movimento associativo – foi possível apesar disso consolidar, na linha das palavras na sessão de abertura do Ministro da Presidência, uma aliança estratégica a bem do melhor acolhimento e integração dos imigrantes em Portugal.

Das ilhas chegam, pois, mensagens importantes a ter em conta nas políticas da imigração.

(Editorial BI/ACIME, Maio, 2006)

23 abril 2006

Lições do massacre de Lisboa

Cinco séculos depois, o massacre de Lisboa não ficou, felizmente, remetido ao silêncio disfarçado. Os factos foram recordados dolorosamente: duas a quatro mil pessoas, suspeitas de permanecerem fieis à tradição judaica, apesar de convertidos à força ao cristianismo (cristãos-novos), foram trucidadas numa onda de loucura colectiva que atravessou a cidade de Lisboa. Em três dias – 19 a 21 de Abril de 1506 – num movimento quase espontâneo, gerado por vozes fanáticas que exploraram um sentimento anti-semita pré-existente, libertaram-se demónios que chacinaram sem dó, nem piedade, homens, mulheres e crianças. A propósito deste acontecimento, para além de tudo o que foi dito, é útil actualizar a nossa reflexão para o século XXI.

Combustível. Comburente. Chama.

O populismo necessita, tal como o fogo, de combustível, comburente e calor. Esses elementos constituintes do “triângulo” do fogo precisam estar presentes simultaneamente para que o incêndio ocorra. Façamos o paralelismo: nessa altura, o combustível era representado pelas condições sociais desfavoráveis de crise grave, induzida pela seca, com consequente fome, e agravada pela peste. Ontem, como hoje, o populismo só coloca multidões irracionais em movimento quando beneficia de um contexto de crise que lhe sirva de combustível. Sem ela, não arde. Por isso, sempre que se está perante crises de grande desemprego e pobreza alargada, todos os alertas devem estar monitorizados para este risco de “incêndio” social.
Mas a crise por si só não é suficiente. Precisa ainda de comburente. No século XVI, nos tristes acontecimentos de Lisboa, o contexto de anti-semitismo favoreceu em muito a tragédia. Qual oxigénio para o incêndio social, o preconceito em relação ao “outro” – seja ele estrangeiro, judeu ou negro – é essencial para que a combustão se dê. A existência de índices elevados de xenofobia e de racismo, o desenvolvimento de diferentes expressões de choque de civilizações e o medo instilado face a hipotéticas ameaças protagonizadas por um “outro” que nos é apresentado como desumanizado, devem constituir outro eixo de alerta.
Finalmente, na metáfora do fogo, o papel dos que instigaram à selvajaria. Aparentemente dois religiosos terão incendiado os lisboetas com apelos ao morticínio dos cristãos-novos. Quando perante elevadas cargas de combustível social – crise, desemprego, pobreza – e de comburente – diabolização de um qualquer “outro” – alguém lança uma chama, quase sempre se produz uma grande explosão. Foi isso que aconteceu em 1506, na capital do reino e que custou a vida a milhares de pessoas. E que se pode reproduzir sempre que o triângulo do fogo social está completo. Por isso, vozes populistas, um pouco por toda a Europa, constituem um perigo sério enquanto incendiários sociais que devemos ter em conta.
Ora, todo este exercício metafórico deve ser olhado também, tal como na prevenção e combate ao fogo, na atitude sensata de lutar contra a coexistência e potenciação destes três factores, no mesmo tempo/local. A prevenção faz-se, portanto, combatendo o preconceito que é comburente, a crise que é combustível e os argumentos dos incendiários.

O perigo de lideranças ausentes e de políticas erradas..

Sem ambições de um extremo rigor histórico, parece ainda assim viável olhar este acontecimento também pela perspectiva das lideranças. À data dos acontecimentos, D. Manuel encontrava-se fora de Lisboa. Em grande medida, essa ausência terá favorecido a dimensão e a duração do massacre. É certo que assim que soube, regressou de imediato a Lisboa, foi firme no restabelecimento da ordem pública e muito duro na aplicação de penas aos instigadores: ambos os religiosos foram condenados à morte. Não sendo de somenos importância tal reacção, ela revelou-se tardia e nada pôde remediar. Lideres ausentes em tempo de risco de incêndio social constitui um factor adicional que favorece a catástrofe.
É útil também nesta reflexão registar que os acontecimentos de 1506 ocorrem sete anos depois de um das primeiras políticas assimilacionistas desenvolvidas sistematicamente em Portugal: a conversão forçada dos judeus ao cristianismo. Por pressões externas e por desejo de anulação de diferenças potencialmente ameaçadoras, a regra assimilacionista transformou milhares de judeus em cristãos-novos. Ora o interessante verificar nesta viagem pela memória é que essa opção política não anulou a hostilidade perante o “outro”; ou seja, não foi pelo facto de serem obrigados a tornarem-se iguais na fé que os “outros” deixaram de ser ostracizados. Pelo contrário, as desconfianças acentuaram-se e o desenlace foi o conhecido. Ontem, como hoje, as políticas assimilacionistas não anulam a desconfiança perante a diferença ainda que esta aparentemente desapareça. Pelo contrário.

Quem perde mais é o perseguidor...

Um articulista - Ferreira Fernandes no Correio da Manhã - sublinhava por estes dias, a propósito do massacre de Lisboa, um outro eixo fundamental de análise: o auto-prejuízo causado a Portugal por todo o processo de hostilização e expulsão dos judeus. Como recordava Landes, na sua História da riqueza e da pobreza das Nações, citando o exemplo de Portugal e da expulsão dos judeus, “em questões de intolerância a maior perda é a que o perseguidor inflige a si mesmo”. O êxodo das famílias judaicas de Portugal, para destinos como a Holanda, causou danos significativos no capital humano e financeiro do Estado português. Um século depois, o P. António Vieira procura, nesse domínio, corrigir o erro e convencer o Rei e a Igreja da vantagem do regresso dos judeus a Portugal, pois o país precisava deles para o seu desenvolvimento. Em vão. Essa ousadia viria mesmo a custar-lhe alguma suspeição que o levará mais tarde à condição de réu da inquisição.
A consciência de que o dano da perseguição cai - para além das vitimas que o sofrem directamente - também sobre o perseguidor é um importante elemento a ter em conta. Para além da culpa moral provocada por gestos ignóbeis, soma-se o dano material sobre os interesses mais directos da sociedade que persegue. Hoje, em cenários de perseguição, ainda que mais suavizados, há que não esquecer o quanto perde o perseguidor.

A importância do pedido de perdão.

Em 2000, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, no mesmo local onde se iniciou o massacre, pediu publicamente perdão, em nome da Igreja, por todas estas perseguições desencadeadas sob a bandeira da fé, ainda que muitas vezes nada com ela tivessem a ver. Esse gesto nobre e digno, aponta uma outra pista de reflexão. Se é certo que “errar é humano”, assumir os seus erros, pedir perdão e alterar o futuro em função dessa consciência ética, não é tão comum como seria desejável. Nesse sentido, diferentes sociedades, em diferentes momentos da sua história terão cometido injustiças deste e de outros calibres. São poucas as que estarão isentas de nódoas na sua História. O acerto de contas com a memória das vítimas, exige que todas elas sejam capazes de chegar ao perdão. Só através dele, pedido e aceite, se poderá reconstruir uma relação justa e equilibrada, sem passivos ocultos ou sentimentos reprimidos.


A ver o blog a Rua da Judiaria, de Nuno Guerreiro.
Para ler, o Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler

15 abril 2006

Passaporte para o Céu

A história não é nova. Já no PÚBLICO, Paulo Moura tinha descrito com génio os dramas da floresta de Missnana, em Marrocos, onde centenas de imigrantes subsariaanos esperam o dia de embarque para a Europa, em pateras ou zodiacs. Só que agora em Passaporte para o Céu, o arco das histórias tem outra dimensão e profundidade, embora fique ainda incompleto. Como refere o autor: “A história dos «camarades» é desconhecida porque não acaba. Não é uma história. Falta-lhe um ponto final. Eles vieram à procura do Céu e encontraram uma história interminável. Encontraram o Inferno

O livro é, por isso, profundamente perturbador. O repórter do PÚBLICO transforma-se em voz de uma multidão que grita e não é ouvida. Quem o lê fica com uma incómoda sensação de cumplicidade silenciosa perante um drama humano que se desenrola continuamente a algumas centenas de quilómetros. Porque “o seu sentido somos nós. O sonho europeu que à própria Europa já escapou. E a verdade é que não podemos fazer nada, porque não estamos à altura do sonho deles.”

Num sistema iníquo, estes homens e mulheres ficam à mercê de vicissitudes inauditas. Escreve Paulo Moura: “Os ilegais são vulneráveis a qualquer chantagem e mercadoria de negócio para muita gente. A polícia sabe onde eles estão, e cobra cara a sua tolerância. Os vizinhos fazem o mesmo. Todos ganham à excepção dos próprios imigrantes. Que tesouro é este?
Dá para todos, de forma desigual. Os donos das pensões, os guardas, os intermediários, os que trazem os imigrantes da África Subsaariana e os que os transportam até à Europa, os angariadores, os informadores, os vigilantes, os que colaboram, os que denunciam, os que se calam, os polícias, os politicos, os juízes. Todos vivem à custa dos mais pobres, dos que não têm nada. Estranha pirâmide em que os mais miseráveis sustentam o resto da sociedade


Apesar de tudo, cá e lá, alguns quebram esta iniquidade. Marca a história, o exemplo Isidoro Macias, o Padre Pateras, que em Algericas, ajuda sem hesitação quem precisa os imigrantes subsaarianos que chegam às praias espanholas – “Não pergunto se é cristão, muçulmano ou ateu. Também não quero saber se a história que me contam é verdadeira ou não. Nem o que vão fazer das suas vidas depois de as ter ajudado” – soma-se ao Pastor pentecostal, Isaías que coabita em Missnana com os que aí se escondem à procura de uma oportunidade. Numa “zanga” igual às demais, vai ajudando como pode.

Passaporte para o Céu tem um prefácio de António Guterres que sublinha a intersecção entre os mundos das migrações e do deslocamento forçado. Alertando para que “a intolerância é alimentada por alguns políticos em busca de popularidade e por diversos media procurando uma maior audiência” sublinha que “o crescimento do populismo conduziu a uma confusão sistemática e intencional na opinião pública, misturando problemas de segurança, terrorismo, fluxos migratórios, refugiados e asilo. Promover um debate racional significa primeiramente confrontar este procedimento irracional e populista. Isso pode ser atingido promovendo a educação, a tolerância, a razão e os valores democráticos.

Para esta causa, o contributo de Paulo Moura, com “Passaporte para o céu” é muito relevante, mas vai muito mais longe. Ao trazer-nos as histórias concretas de vidas com nome – ilustradas algumas delas por fotografias de Nacho Doce - esta obra abre uma janela para a nossa redenção. Vimos, ouvimos e lemos; não podemos ignorar.



Edição da D. Quixote. A ler já!

Para saber mais sobre Paulo Moura.

14 abril 2006

Clandestino

Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Para burlar la ley
Perdido en el corazon
De la grande babylon
Me dicen el clandestino
Por no llevar papel
Pa una ciudad del norte
Yo me fui a trabajar
Mi vida la deje
Entre Ceuta y Gibraltar
Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad
Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel
Perdido en el corazon
De la grande babylon
Me dicen el clandestino
Yo soy el quebra ley

Mano negra clandestino
Peruano clandestino
Africano clandestino
Marijuana ilegal




de Manu Chao.

Também com interpretação de Adriana Calcanhotto em Cantada

10 abril 2006

Futebol: diversidade e discriminação





Não haverá outro campo como futebol onde, de uma forma tão evidente, se mostrem as vantagens da multiculturalidade. Desde 1995, depois da “lei Bosman” que veio liberalizar o número de jogadores estrangeiros nas equipas, vemos os melhores clubes do mundo optarem por planteis de composição multinacional e, por isso, multicultural. O Chelsea, por exemplo, joga frequentemente com jogadores de oito nacionalidades diferentes e o Benfica actuou recentemente com seis jogadores estrangeiros de quatro nacionalidades diferentes. Esta tendência veio a acentuar-se com a aprovação, em 12 de Abril de 2005, de uma abertura total, sem qualquer tipo de discriminação, a perto de 100 países, determinada pelo Acordão Simutenkov, produzido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

São evidências da força da diversidade no futebol.


Mas quando a intolerância impera..


Por outro lado, no futebol vão-se expressando aqui e além sinais de racismo, nomeadamente de algumas claques principalmente em relação a jogadores africanos. Ainda recentemente na vizinha Espanha, Samuel Eto´o foi vitima de apupos racistas da claque do Saragoça (ver video) e na Luz alguns portugueses repetiram a mesma atitude, enquanto que também em Portugal jogadores como Mantorras ou McCarthy sofreram consequências desses gestos. Felizmente, a FIFA e a UEFA têm dedicado a este tema uma atenção crescente. Para além de campanhas de marketing dinamizadas por toda a parte, apelando à recusa do racismo nos campos de jogo, a Federação Internacional foi agora mais longe. No mês de Março, o Comité Executivo da FIFA decidiu agravar significativamente as penas por actos racistas no futebol. Agente desportivo que cometa uma ofensa de natureza racista sofrerá uma pesada pena:
(nº1) Qualquer pessoa que publicamente humilhe, discrimine ou denigra o nome de alguém de forma difamatória devido à sua raça, cor, língua, religião ou origem étnica, ou cometa qualquer outro acto discriminatório e/ou de desdém, será sujeita a uma suspensão pelo menos por cinco jogos a todos os níveis. Para além disso, será aplicada ao infractor uma interdição de entrar em estádios e uma multa não inferior a 20.000francos suíços. Se o infractor for um agente desportivo, a multa será de pelo menos 30.000 francos suíços.

Acresce ainda que se o comportamento impróprio for comprovadamente atribuído a uma das equipas perde automaticamente três pontos (1ª ofensa), seis pontos (2ª ofensa) e finalmente será desclassificada à terceira ofensa. Finalmente os espectadores que exibam slogans deste tipo, provocam um dano ao seu clube de 30.000 francos suíços e serão proibidos de entrar nos estádios durante dois anos.

Trata-se sem dúvida de um exemplo notável que a Federação Internacional de Futebol nos dá e ao qual a Federação Portuguesa já aderiu. Veremos pois como as autoridades desportivas portuguesas irão impor este novo quadro regulamentar. A tolerância zero em relação ao racismo deve acompanhar a acção positiva de celebração da diversidade e a pedagogia da diferença. Com essa dupla abordagem poderemos ter no futebol um importante instrumento de construção de uma sociedade mais aberta.


Ver a este propósito FARE -Football against racism in Europe e Show racism the red card

26 março 2006

Cardeal de Los Angeles defende imigrantes ilegais


Em recente artigo (22 Março de 2006) com o título “Called by God to help”, o Cardeal Mahony, de Los Angeles, reafirma a sua posição - alvo de grande criticismo dos conservadores norte-americanos - de desobediência civil à nova lei de combate à imigração ilegal que havia expresso no ínicio de Março, no arranque da Quaresma.
Não temendo a ameaça ditada pela lei de cinco anos de prisão para aqueles que apoiem imigrantes em situação irregular a permanecer nos EUA, o Cardeal Mahony deu instruções inequívocas às paróquias e outras instituições da Igreja católica para manterem o apoio humanitário aos imigrantes, sem preocupação sobre qual é o seu estatuto legal, deixando claro que “recusar ajuda a um ser humano viola uma lei com mais autoridade que a do Congresso – a lei de Deus”.
No seu artigo torna claro que a Igreja Católica não encoraja, nem apoia, a imigração ilegal, desde logo porque conhece bem os dramas vividos por estes imigrantes e sabe o que sofrem pela desprotecção total. Defende, no entanto, a agilização de canais legais de imigração que protejam os migrantes e a nação americana, sublinhando que posições exclusivamente securitárias não resolvem nada, agravando ao invés o problema. Deixando claro que, ultimamente, esta é uma questão ética e moral, o Cardeal Mahony deixa a esperança que se inverta esta iniciativa legislativa e “se respeitem os valores – justiça, compaixão e oportunidade – sobre os quais a nossa nação, uma nação de imigrantes, foi construída”.

25 março 2006

A evolução do modelo multicultural canadiano

O modelo multicultural canadiano tem sofrido uma evolução que Fleras e Elliot (2002) definem de uma forma interessante, sublinhando três etapas: de uma fase inicial, nos anos 70, onde destacam a sua dimensão étnica, com a metáfora do mosaico cultural a guiar a sua construção, para uma etapa posterior, nos anos 80, onde o discurso se centra na equidade, concretamente na igualdade de oportunidades, usando como metáfora a "nivelação" até finalmente nos anos 90 se chegar ao multicultiralismo cívico, onde se sublinha sobre tudo o combate à exclusão social, por via da inclusão e se utiliza a metáfora da "pertença". Este foco na construção de uma sociedade inclusiva, onde se apela a uma cidadania plena de todos os cidadãos, sem que devam abdicar dos seus traços distintivos representa um forma muito distante do modelo criticado de fragmentação e de "ilhas sem pontes" que os adversários do multiculturalismo apontam. É evidente que falta ainda a este fase do multiculturalismo cívico a afirmação mais clara de uma perspectiva de interelação e de miscigenação como dimensões estruturantes. O salto para a interculturalidade ainda não é expresso inequivocamente. Mas já não está longe.

Demasiado iguais - Esse é o verdadeiro problema...


“Ele humilhou-me, impediu-me de ganhar meio milhão, riu dos meus prejuízos, zombou dos meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se afastassem, encorajou meus inimigos.
E tudo, por quê? Por eu ser judeu.
Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morreremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?
Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo cristão? Ora, vingança.
Hei de por em prática a maldade que me ensinaste, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda”.

"O Mercador de Veneza", de Willian Shakespeare - Acto III, Cena I


Nota: Testemunho do judeu Shylock (interpretado por Al Pacino no filme "O Mercador de Veneza" de Michael Radford )em tribunal onde reclamava como compensação de um empréstimo não pago, meio quilo da carne do devedor, o cristão António (interpretado por Jeromy Irons). A corte veneziana terá que decidir da aplicação desta indemnização. Vale a pena ver o filme.

A culpa é do outro

"Nos finais do século XV aparece a sífilis, de cuja propagação se acusa sempre os outros, os inimigos. Para os italianos era o “mal francês”, porém os franceses chamavam-lhe o “mal napolitano”; os espanhóis baptizaram a doença como o “mal alemão” e os flamengos chamaram-lhe o “mal espanhol”; para os russos era ‘o mal dos polacos', e para os turcos, ‘o mal dos cristãos'."

El País Semanal, 11 de Outubro de 1992, p. 62

Nota: Ver a este propósito um interessante artigo de Sérgio Carrara, " A geopolítica simbólica da sífilis: um ensaio de antropologia histórica"

24 março 2006

Os “nossos” e os “outros”

Nas últimas semanas tem tido elevado destaque mediático a expulsão de emigrantes portugueses que permaneciam ilegalmente no Canadá. Recorrentemente tem sido sublinhado o drama humano de famílias com a sua vida instalada já há alguns anos naquele país e que, de um dia para o outro, se vêem obrigados a sair, pois aí não tinham autorização para permanecer e trabalhar. O governo canadiano, aparentemente, decidiu aplicar com mais rigor a lei vigente há dez anos e fazer executar as expulsões de imigrantes em situação irregular.

Nenhum de nós – começando pelos jornalistas – deixa de ser sensível ao facto que compatriotas nossos vejam, em poucos dias, o sonho da sua vida de emigrante desfeito em pó. A identificação com as vítimas ocorre naturalmente. Afinal, que mal faziam estes portugueses à sociedade canadiana? Trabalhavam - ainda que para isso não tivessem autorização – e faziam a sua vida sem incomodarem ninguém...Ouve-se por aí: “como é que os canadianos se atrevem a fazer isto aos nossos?!”

Simultaneamente, ocorriam em Portugal as maiores operações conhecidas de detecção de imigrantes em situação irregular. Numa só acção foram notificados para abandonar o país, 234 imigrantes brasileiros nessa situação que se encontravam numa festa. Curiosamente, em nenhuma notícia – nenhuma, sublinho - era destacado que, nesse momento, se desfazia o sonho daqueles imigrantes que eram obrigados a abandonar o país, nem se tinha em conta o drama humano inerente. Estaríamos perante “coisas” e não pessoas? O tom da descrição era policial, com sublinhado do aparato usado e das aparentes razões de queixa dos comerciantes vizinhos. Surgiram expressões como “caça a ilegais” e “combate a ilegais”.

Perante o mesmo fenómeno – a expulsão de imigrantes em situação irregular – como avaliar eticamente esta diferença de atitude, conforme se estamos a falar de “nossos” ou dos “outros”? Como admitir que, num caso, condenemos a atitude de um Estado soberano e noutro, a apoiemos? Que, numa situação, sintamos compaixão com os que sofrem a expulsão e noutra essa compaixão seja esquecida?

É um caso típico de “dois pesos, duas medidas”.

Este contraste deve fazer-nos reflectir. Primeiro que tudo, na clarificação do fenómeno da imigração irregular. No discurso mediático e na opinião pública há frequentemente uma associação, ainda que implícita, de “imigrante irregular = criminoso”. Ora, como percebemos agora pelos “nossos” não é assim. Na sua esmagadora maioria, os imigrantes em situação irregular são pessoas que permanecem e trabalham num dado país, não tendo para isso autorização desse Estado. Não são criminosos: são trabalhadores não autorizados. É muito diferente. Merecem, por isso, um tratamento humano e uma compaixão expressa a todos os níveis: nomeadamente social, mediático e político.

Note-se, no entanto, que isto não equivale a que a lei de entrada, permanência e saída de estrangeiros de cada país não deva ser – como qualquer lei – integralmente respeitada. E neste domínio temos que ser coerentes: o princípio é válido quer para Portugal, quer para o Canadá. Nenhum Estado soberano pode abdicar da gestão das suas fronteiras e do seu mercado de trabalho. Por isso, os circuitos de imigração irregular devem ser combatidos e desincentivados. Mas esse objectivo só se consegue com uma política de admissão de imigrantes em situação legal que funcione agilmente. E se é certo que não podemos viver em regime de regularizações extraordinárias sistemáticas, temos que ter respostas inteligentes e humanas.

Por outro lado, quando aos imigrantes indocumentados é aplicada a lei, com eventuais medidas de afastamento, deve-o ser tendo em conta o pleno respeito pela dignidade humana que começa na acção das autoridades e termina na mentalidade e nas atitudes de cada um de nós, passando evidentemente pelos jornalistas que constróem a notícia destas operações policiais.

Mas, no que se refere à fiscalização e penalização, é fundamental que se concentrem esforços nos que tiram partido da imigração irregular: desde as máfias, até aos empregadores na economia informal que abusam do trabalho imigrante, passando por aqueles que exploram estes imigrantes na habitação. Quando virmos nas notícias que são estes os perseguidos e os penalizados e deixarmos de ver expressões hediondas como “caça a ilegais” a ocupar todos os dias o espaço mediático estaremos no caminho certo.

(Editorial do BI do ACIME / Abril 2006)

14 março 2006

Planeamento urbano e integração de imigrantes

Somos - também - o espaço que habitamos. Inevitavelmente, para o bem e para o mal, o contexto espacial influencia comportamentos e atitudes, expectativas e dinâmicas sociais. Não é nada indiferente à geração e/ou reforço da exclusão ou inclusão social, a conceptualização e execução de modelos urbanísticos, quer na sua dimensão de espaços privados, quer no domínio do espaço público. A qualidade deste, em contextos urbanos, é mesmo um factor determinante da qualidade de vida das populações que o utiliza e condicionante das suas trajectórias na comunidade.

Tradicionalmente, as faixas de população mais pobre não têm ao seu alcance, no domínio da habitação, opções de qualidade. Os espaços ao seu dispor são desprovidos e tristes, massificados e “industriais”, reforçando um circuito de exclusão que não termina. Nesses contextos sujeitos a forte pressão de exclusão social, nos quais há uma sobre-representação de imigrantes e minorias étnicas, também os poderes públicos parecem, por vezes, considerar suficiente suprir carências básicas de habitação. Nasceram, assim, projectos urbanísticos centrados quase exclusivamente na habitação para o maior número, ao menor custo. Sendo em si mesmo positivo – muitos desses beneficiários provinham de situações de habitabilidade indignas - não chega proporcionar-lhes um tecto.

Efectivamente falar de integração de imigrantes é também falar de política de Cidades, entendidas de per se ou enquanto sistema. A evidente necessidade de um maior cerzimento urbanístico - tornando o espaço urbano contínuo e não apenas contíguo - implica repensar globalmente a forma como olhamos a cidade, perspectivando-a como um todo e não enquanto um espaço fragmentado, procurando salvaguar o maior número possível de contactos com o restante espaço urbano em que estes territórios se inserem. Neste sentido, a evidência da relação entre a exclusão e a segregação sócio-espacial deve reforçar a necessidade de que as políticas de combate a esses fenómenos sejam o mais territorializadas e localizadas possível.

Mais do que para qualquer outra faixa de população, o investimento no planeamento urbano cuidado, a aposta em infra-estruturas sociais e culturais de apoio e a opção pela elevada qualidade estética dos espaços são ferramentas essenciais para um processo de combate à exclusão das populações mais pobres, entre as quais as comunidades imigrantes. O investimento no ordenamento do território, no planeamento urbano e na qualificação dos espaços no âmbito da integração social e económica destas comunidades é pois absolutamente estratégico, no quadro de coesão social.

A nossa história recente tem registado evoluções significativas no domínio do planeamento urbano. Com um passado com muitos erros e imperfeições, as soluções urbanísticas têm sido reinventadas em função de uma melhor integração das populações a que se destinam. Procuram-se hoje evitar erros que outros cometeram e aprender com exemplos de boas-práticas nacionais e estrangeiras. Numa perspectiva de aproximar as soluções aos seus principais destinatários, parece cada vez mais relevante criar instrumentos de participação dos imigrantes (bottom-up) no processo de planeamento urbano, algo que alguns exemplos têm vindo a demonstrar fazer a diferença. Mas precisamos de continuar a procurar caminhos inovadores.

08 março 2006

Mulher migrante: dupla desvantagem?

Hoje comemora-se mais um Dia Internacional da Mulher. É uma boa oportunidade para reflectir sobre a experiência de mulher migrante.

O número de mulheres migrantes, em todo o Mundo, ascende a 90 milhões, o que corresponde a quase metade da totalidade dos migrantes (49%)[1]. A sua percentagem é particularmente elevada em países/regiões de acolhimento como a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

Naturalmente, no curso da reflexão sobre Imigração, foi sendo atribuída crescente atenção aos temas relacionados com Género. Este cuidado decorre não só do crescimento do número de mulheres migrantes – presença essa que aumentou no total de migrantes de 46,6%, em 1960, para 49%, em 2000 - e da especificidade dos fluxos migratórios femininos, mas também da verificação de efectiva discriminação acrescida.

1. Desvantagens da mulher migrante

Verifica-se que as mulheres migrantes sofrem no quadro migratório uma dupla desvantagem comparativa - por um lado, a desvantagem de ser mulher em relação ao homem e, por outro, de ser migrante em vez de autóctone - e que tem um efeito muito marcado. Essa desigualdade é igualmente reforçada a montante. pelo contexto do país de origem que, sendo habitualmente países em vias de desenvolvimento, tem - por regra - ainda muito marcada a diferença de género, com limitações no acesso das mulheres a níveis de instrução e de formação profissional mais diferenciados.

Assim, no que toca, por exemplo, ao acesso a emprego no país de destino, a discriminação clássica no género, multiplica por dois (mulher*migrante). Essa realidade reflecte-se, por exemplo, na taxa de desemprego que é, proporcionalmente, mais alta nas mulheres migrantes dos que nos homens migrantes, bem como igualmente mais alta nas mulheres migrantes que nas mulheres autóctones. Por outro lado, as oportunidades de emprego estão limitadas a segmentos poucos considerados e mal pagos, como o trabalho doméstico, as limpezas e a restauração, com elevado risco de cristalização e reduzida mobilidade ascendente, em termos profissionais. Acresce que estes sectores de actividade são marcados por elevada taxa de informalidade, o que diminui o nível de protecção social que estas mulheres beneficiam.


2. Mutações do processo migratório feminino

Mas regressemos à génese do processo migratório. A probabilidade migratória das mulheres depende de um conjuntos de factores a considerar[2]:
- Individuais: idade, nº de ordem na família, raça/etnia, origem rural/urbana, estado civil, existência de filhos, papel na família (esposa, filha, irmã ) posição na família (subordinada ou com autoridade), habilitações literárias, competências profissionais e classe social;
- Familiares: dimensão e composição da família, fase do ciclo de vida, estrutura familiar,..
- Societais: normas comunitárias e valores culturais que determinam se a mulher pode imigrar e, em podendo, como e com quem.

Na configuração tradicional, até há três décadas, quem partia inicialmente para o estrangeiro era o homem. Embora fosse secundarizado, o papel da mulher era muito relevante desde o início, pois a formulação de decisão migratória de um membro da família resultava, quase sempre, de um processo partilhado e vivido em comum. Depois, na etapa da concretização da partida do marido, o impacto da migração na família determinava alterações significativas para o papel da mulher, com acrescidas responsabilidades na gestão doméstica e na educação dos filhos, dada a ausência do marido emigrante. A sua heroicidade muitas vezes anónima não é menor que a do protagonista masculino – o emigrante - tido sempre como o único herói visível deste processo.

Quando mais tarde partia para se juntar ao marido, e independentemente do momento no ciclo migratório, o seu papel específico era muito significativo para o sucesso da integração da sua família. Sublinha-se, nesse quadro, o seu contributo, através do trabalho remunerado, para um aumento proporcional do rendimento familiar, a que acresce uma maior facilidade na constituição de redes sociais de proximidade, muito importante para a boa integração da família imigrante na sociedade de acolhimento.

No entanto, esta configuração tradicional do papel da mulher nos movimentos migratórios, visto como dependente do homem, está em grande mutação. Muitas mulheres decidem agora partir sozinhas, e através desta decisão de emigrar, conseguem, em determinados contextos, conquistar papéis mais activos e com maior grau de liberdade e autodeterminação.

Esse facto, não é de somenos importância no quadro de sociedades onde a mulher está confinada a um estatuto menor e dependente. Nesse contexto, a migração destas mulheres pode representar uma janela de oportunidade de autonomia, desde que não se deixem enredar pela reprodução no país de destino dos mesmos laços sociais que a condicionavam no país de origem e que consigam vencer as desvantagens competitivas já referidas. Para além disso, por via da rede de contactos que poderá manter com o país de origem, o seu exemplo, quando bem sucedido, pode representar um factor indutor de mudanças na sua sociedade de origem, colocando em questão as injustiças no tratamento desigual das mulheres.

No caso da migração de mulheres fora do contexto clássico do reagrupamento familiar, surge com maior probabilidade a formação de famílias interculturais, através do casamento com um membro exterior à comunidade de origem. Estes casamentos mistos representam um importante mecanismo de miscigenação da comunidade humana e encerra a esperança de uma maior harmonização das diferenças. Em Portugal, no ano de 2002, dos casamentos realizados 4,8% foram entre um(a) cidadão(ã) português(sa) e um(a) cidadão(ã) estrangeiro(a), o que representou uma duplicação face a 1999 (2,3%) , crescendo em linha com o aumento do número de estrangeiros no nosso país.

No entanto, algumas vezes, o casamento misto surge também como um expediente de integração e de aquisição de situação legal mais estável, por exemplo, através da possibilidade de naturalização. A lei e as instituições de qualquer sociedade de acolhimento devem procurar combater estas formas de perversão e de abuso da instituição do casamento, mas devem fazê-lo somando à eficácia desse combate, um sentido de equilíbrio e de recusa da desconfiança sistemática à priori perante qualquer casamento misto.


3. Direitos fundamentais e choque civilizacional

Coloca-se neste domínio associado ao género, uma das mais evidentes áreas de choque civilizacional entre comunidades de acolhimento e comunidades migrantes. Assim, na esfera do estatuto e do papel da mulher, na sociedade e na família, são visíveis tensões relevantes com algumas culturas. Questões como a desigualdade e subjugação ao homem (pai ou marido) ou de tradições como a mutilação genital feminina, colocam dificuldades e desencontros importantes. Perante estes traços comportamentais de algumas comunidades migrantes, há que identificar e distinguir os que são claramente contraditórios com a lei e os princípios constitucionais das sociedades de acolhimento e os que não o são, ainda que constituam costumes e tradições diferentes.

Para aqueles comportamentos/atitudes ilegais e anti-constitucionais, o princípio do respeito pela especificidade cultural dessas comunidades deve ser secundarizado perante valores associados aos direitos humanos. A defesa da dignidade da mulher, ainda que possa ter matizes culturalmente condicionadas, tem um padrão comum que não pode ser colocado em causa, sob pena de se fracturarem valores básicos da sociedade de acolhimento. No entanto, essa abordagem deve ser feita num contexto de diálogo firme mas construtivo e não através de uma imposição cega da lei. Deve igualmente ser condicionada por uma rigorosa e objectiva avaliação da legalidade, ou não, de uma determinada prática, expurgando eventuais preconceitos não fundamentados, com base no desconhecimento ou estranheza cultural.

Por outro lado, a sociedade de acolhimento, em coerência com o princípio legal da protecção da dignidade da mulher deve, em circunstâncias em que esta pode ser colocada em causa, oferecer mecanismos de protecção suficiente, para que a mulher migrante em risco possa deles beneficiar. Sabendo que a recusa da mulher migrante em aceitar tradições da sua comunidade pode condicionar o rompimento, afastamento e vulnerabilização subsequente, a sociedade de acolhimento não pode ser hipócrita, limitando-se à afirmação do princípio legal da protecção da mulher. A viabilização de título de residência estável, independente dos mecanismos de reagrupamento familiar, a protecção jurídica adequada, o apoio de centros de acolhimento temporário se necessário, são algumas das respostas necessárias.


4. A migração forçada e o tráfico de mulheres para exploração sexual

Nos últimos anos, tem vindo a crescer a preocupação com a dimensão das redes de migração forçada e tráfico de mulheres para actividades conexas com os negócios do sexo. Essa realidade atinge números que envolvem, só na União Europeia, a entrada anual de cerca de 120.000 mulheres vítimas de tráfico[3]. Este é um negócio particularmente rentável, sendo somente ultrapassado em rendimento, no universo do negócios ilegais, pelo tráfico de droga, embora este seja muito mais perigoso para as redes envolvidas. Por isso, as redes clandestinas têm vindo a “investir” cada vez mais nesta fonte de receitas.

Note-se que neste âmbito específico – tráfico - consideram-se exclusivamente mulheres que foram envolvidas em redes organizadas de exploração sexual, agindo fora do seu país de origem, nas quais se vêem obrigadas a permanecer, sofrendo várias expressões de violência física e psicológica em circuitos de negócios de sexo. De uma forma mais rigorosa, considera-se tráfico “...o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou a recolha de pessoas, pela ameaça de recursos, à força ou a outras formas de coacção, por rapto, por fraude, e engano, abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade, ou através da oferta ou aceitação de pagamentos, ou de vantagens para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre uma outra para fins de exploração[4]


A questão do tráfico de mulheres para exploração sexual é um problema complexo que, no entanto, exige a partida uma clarificação de princípios. É inaceitável, em qualquer circunstância, o tráfico de pessoas, mesmo quando se argumenta que se trata eventualmente de uma opção livremente exercida pela mulher envolvida. De novo, a dignidade da Pessoa, não permite contemporizações com este fenómeno. Deve, por isso, ser combatido todo o sistema de exploração que viabiliza este circuito, ao mesmo tempo que se deve proteger e recuperar as mulheres vítimas de tráfico.

O tráfico tem condições favoráveis, desde logo, pela pobreza nos países de origem que atinge particularmente as mulheres e na escassez de horizontes que essa pobreza origina. Isso torna possível que muitas mulheres fragilizadas e vulneráveis se deixem enganar - por outros, ou mesmo por si próprias - perante oportunidades que lhes surgem e parecem ser a solução dos seus problemas. Ilusões quanto à proposta de “trabalho” (bailarinas, empregadas de mesa, modelos,....) não antecipam o pesadelo que irão viver e a pressão para sair do país de origem a qualquer custo não estimula a prudência necessária. Mesmo aquelas que têm consciência que irão desenvolver actividades de prostituição, não imaginam a situação que irão enfrentar, nomeadamente de sequestro.

Uma vez chegadas às malhas das redes, a verdadeira face da exploração desvenda-se, quase sempre com a confiscação dos documentos – o que as torna de imediato indocumentadas face à lei – e com o exercício violento das exigências próprias desse circuito. O controle absoluto de movimentos e o sequestro, a violência física, a obrigatoriedade de prática continuada da prostituição e a sua transição entre diferentes casas de exploração são algumas das evidências mais frequentes. E o que começou com uma imprudência ou um engano, acaba numa exploração degradante.

Neste processo, as mulheres traficadas acabam por ser o alvo preferencial e a sua penalização social e legal é incomparavelmente maior que a dos verdadeiros criminosos que as traficam e as exploram, bem como a dos seus “clientes” que abusando da sua situação de vulnerabilidade, são cúmplices nesse circuito diabólico. O pensamento dominante das sociedades de acolhimento culpabiliza-as quase sempre, atribuindo a circunstância em que se encontram ao exercício da sua vontade. Como noutras questões de exclusão social – como a toxicodependência, por exemplo - a interpretação que é feita do exercício da liberdade individual é descontextualizada. As “prisões” que determinados sistemas impõem são feitas de grades aparentemente invisíveis aos olhos dos comuns que não as vivem.

Sabendo existirem várias perspectivas possíveis na abordagem desta drama, umas mais focadas na questão policial ou migratória, outras sobretudo na questão dos direitos humanos, importa ter uma perspectiva integrada e transversal que inclua medidas preventivas, legislação penal, boa articulação e cooperação entre as polícias e tribunais, bem como mecanismos de protecção, assistência e apoio às vitimas. Este último vector deve consistir na primeira prioridade, em função do qual todos os outros se desenham.

As consequências dos traumas psíquicos e físicos que estas vítimas sofreram durante o período de exploração são grandes e exigem um cuidado multidisciplinar e gerador de segurança e protecção. Assume particular importância a possibilidade de ser concedido um estatuto legal de protecção de média-longa duração que possibilite a recuperação e reinserção social no próprio país de acolhimento, quando se evidencia ser essa a vontade da mulher. O papel das ONG no processo de assistência e apoio ás vítimas de tráfico é insubstituível e, não dispensando o papel dos Estados, pode em muito acrescentar na resposta solidária a estas vítimas.

As Nações Unidas, a Organização Internacional para as Migrações e a União Europeia têm dado particular atenção a este tema, mas muito resta por fazer.


5. Recomendações e pistas futuras

É evidente que a reflexão e acção futuras no domínio das políticas de imigração devem continuar a consolidar a atenção crescente que tem sido dada ás questões de género.

As Nações Unidas, no relatório já referido, tendo em vista a melhor integração das mulheres migrantes, recomendam, entre outras medidas:
• Capacitação das mulheres, para que participem nas decisões que as afectam a si próprias e às suas famílias;
• Protecção dos direitos e da segurança das mulheres migrantes, das refugiadas e das que são objecto de tráfico, nomeadamente através de legislação e de convenções internacionais mas também, o que é ainda mais importante, graças a programas que as ajudem a afirmar os seus direitos;
• Aumentar as oportunidades de emprego e o acesso à educação, à formação, à habitação segura e a preços acessíveis, aos cuidados de saúde e a outros serviços; e
• Mais dados, sobretudo dados desagregados, sobre as mulheres e a migração, acompanhados de um estudo quanto às suas causas e efeitos, a fim de permitir criar uma base em que possa assentar a formulação de políticas e programas.

Nesta mesma direcção importa reforçar o envolvimento das mulheres migrantes em movimentos associativos com participação também de mulheres autóctones, bem como estimular e reforçar o empenho da sociedade civil do país de acolhimento para estas problemáticas específicas.


(in "Uma mesa com lugar para todos")

[1] World Survey on the Role of Women in Development: Women and International Migration (Março de 2005); 9
[2] cf. estrutura apresentada em Boyd, Monica; Grieco, Elizabeth (2003) Women and Migration: Incorporating Gender into International Migration Theory , University of Toronto, Migration Policy Institute.
[3] Cf. informação disponível em “Tráfico de mulheres. A miséria por trás da fantasia: da pobreza à escravatura sexual – Uma estratégia europeia global”. Em http://europa.eu.int/comm/justice_home/news/8mars_pt.htm
[4] termos do Protocolo de Palermo, art. 2º, alínea a).

06 março 2006

Colisão - Simplesmente extraordinário



Poucas vezes o cinema nos terá oferecido, por um lado, um tão extraordinário exercício de interpretação da realidade complexa que vivemos nos contextos multiculturais dos nossos dias e, por outro, uma tão cristalina visão da natureza humana.

COLISÃO, independentemente do veridicto dos Óscares, é - arrisco - uma obra prima, desde logo, pelo seu argumento original. Ao contrário de incursões muito maniqueistas, que abundam em filmes que cruzam as temáticas do racismo e da exclusão social, onde o bem e mal estão em continentes bem separados, esta história vai mais longe e chega ao ponto certo. Como o dissendente russo Alexander Soljenítsin, os autores do argumento (Paul Haggis e Bobby Moresco) parecem ter o mesmo ponto de partida: "Que bom seria que os homens se dividissem entre bons e maus... Encerraríamos os maus e restariam os bons. O problema é que a linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada homem: e quem de nós está disposto a abdicar de metade do seu coração?"

Toda a história de COLISÃO é, acima de tudo, um rendilhado de vidas que se cruzam, revelando em diferentes momentos, as faces - mais ou menos ocultas - de cada personagem. As tensões dos encontros e desencontros com o "outro", os preconceitos que nos habitam nos contextos mais inesperados (You think you know who you are. You have no idea.), a redenção que nunca é impossível e a perfeição que nunca chega a ser eterna, são alguns dos veios que o filme desenrola. Esta leitura que nos propõe (num clima estético sofisticado, onde a música é peça fundamental) embora seja lançada em torno da ideia do toque e do choque, da distância e da diferença, é simplesmente sobre a nossa humanidade. Com ele, descobrimo-nos.

E se para todos COLISÃO deveria ser de visionamento obrigatório, para quem trabalha em contextos multiculturais, com a temática da imigração e do racismo, é um referencial indispensável. Seis nomeações para os Óscares pode, muitas vezes, não querer dizer muito. Neste caso, só peca por defeito.


"It's the sense of touch. In any real city, you walk, you know? You brush past people, people bump into you. In L.A., nobody touches you. We're always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much, that we crash into each other, just so we can feel something."

Disponível em DVD.

Indispensável ler o artigo "Um filme muito inteligente" de Maria José Nogueira Pinto, no Diário de Notícias, de 30 de Março.

"Crash é a história da contradição presente na condição humana, entre o bem e o mal, nunca linear, sem categorias homogéneas: humilhação e exaltação, morte e vida, dignidade e indignidade, condenação e perdão, tirar e dar. E por isso é também, como não podia deixar de ser, uma história de redenção."