17 janeiro 2006

É relevante referir a nacionalidade num notícia de crime?

1. É evidente e cientificamente demonstrado que não existe predisposição diferenciada para a actividade criminosa conforme a etnia, a religião ou nacionalidade a que se pertence. Nunca estas características constituem uma dimensão explicativa de comportamentos ilicitos em geral.
2. Podem existir crimes onde a motivação para a sua autoria é étnica, religiosa ou nacional. Nesse caso, a notícia não pode ser explicada sem esse enquadramento, sendo eventualmente para tal relevante perceber qual é a etnia, religião ou nacionalidade do autor, conforme o caso. No entanto, sublinhe-se que quase sempre, nesses casos, se tratam de crimes exercidos sobre minorias, no quadro de atitudes racistas ou xenofobas.
3. Quando não estamos perante um crime de motivação étnica, religiosa ou nacional, constitui, a meu ver, um erro jornalístico atribuir relevância no enquadramento da notícia, à etnia, religião ou nacionalidade do autor (porque não a cor dos olhos, a altura, o signo, a rua onde mora, ou um conjunto de outras irrelevâncias?). Tanto mais que tal só é concretizado quando este pertence a uma minoria vísivel e nunca é referido quando se trata de um membro da maioria que é sempre "transparente" na notícia.
4. Na notícia referida, em nada transparece no texto a evidência de uma motivação étnica ou nacional para a autoria do crime. Avança-se com a possibilidade de se tratar de um acto cometido no quadro de uma doença mental. Pergunta-se então o porquê a identificação da nacionalidade. Se fosse de nacionalidade portuguesa, tal facto seria referido? (p.e. está escrito "O cabo-verdiano falava alto e explicava que o incidente poderia até ter sido mais grave". Seria escrito,caso se tratasse de um português: "O português fala alto e explicava que o incidente poderia ter sido mais grave"?)
5. Acresce que resultante da prática jornalística actual, se verifica, algumas vezes, a referência recorrente à etnia ou nacionalidade em notícias de crime só quando os suspeitos pertencem a minorias visíveis. Tal induz à percepção da opinião pública de uma associação entre criminalidade e essas minorias visiveis. Este efeito colateral é o maior contributo para o crescimento de atitudes racistas e xenofobas em qualquer sociedade com forte presença dos media.
6. Os Media deveriam, num quadro de auto-regulação e em respeito quer pela técnica do jornalismo, quer pela sua ética profissional, abdicar de referenciar qualquer factor de discriminação (etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual,..) sempre que esse elemento não constitua factor explicativo da notícia.


(comentário a noticia "morte de jovem poderia ter sido evitada" do DN de 12.1.2006)

06 janeiro 2006

Conhecer. Respeitar. Aceitar

“Deus” já serviu de mote a muitas guerras e, à sua conta, os Homens foram justificando diferenças e agressões, conquistas e destruições. Não é de agora que este movimento de hostilização do Outro, pela sua suposta diferença religiosa – ou outra – se abateu sobre o mouro, o judeu, o católico ou o protestante. Mas hoje, a moda é falar de “choque de civilizações” como sinónimo de uma guerra religiosa à nossa porta. Acresce, com excessiva facilidade e óbvio simplismo, a associação ao terrorismo do rótulo islâmico e colagem de tudo isto a comunidades imigrantes. Como se fosse tudo a mesma coisa. O “inimigo” está (re)encontrado.

Presumimos com leveza e ingenuidade que o que nos separa são as diferenças. Assim desculpamo-nos com diferentes Deuses para dissimular a nossa muito humana - e comum - ambição e sede de poder. Mas são essas, que atravessam todos os tempos e todos os homens, que representam verdadeiramente a fonte de todos os conflitos. E configuram o que há de semelhante em nós.

Portugal tem, apesar de tudo, nos últimos anos, sabido conviver com a diversidade religiosa. Com alguma naturalidade e até mesmo um certa curiosidade. Ainda longe do turbilhão do centro da Europa que já levanta muita tempestade, por cá vamos coexistindo pacificamente e sem tensões assinaláveis. Importa, no entanto, ter consciência que a natureza humana, mais tarde ou mais cedo, virá à tona e que a ignorância sobre o Outro – ainda existente, apesar de tudo - será o terreno fértil para as nossas crises. Não nos deixemos embalar pela expectativa dos “brandos costumes”.

Por isso, o estudo "Filhos diferentes, Deuses diferentes", a editar brevemente pelo Observatório da Imigração, da autoria de Susana Pereira Bastos, de Gabriel Pereira Bastos e equipa, representa um contributo muito importante para Portugal. Na medida de uma leitura atenta, ajudar-nos-á, por via da iluminação das diferenças, a descobrir a diferença. Assim reduziremos os nossos medos e veremos o “outro” – na sua afirmação de “filho diferente de um Deus diferente” - como tão diferente quanto eu. Esta valorização das diferenças que o estudo percorre desde comunidades com as quais convivemos há séculos, como as ciganas, até às recentes vagas de cabo-verdianas, sikhs, muçulmanos ismaelitas e sunitas, revela-se, por isso, muito inspirador.

Não se trata, note-se, de normalizar as diferenças, aplanando-as. O que nos é pedido é que optemos por encetar um diálogo, só possível porque as conhecemos, as respeitamos e as aceitamos.