21 fevereiro 2006

A nova lei da nacionalidade - Consenso para uma cidadania inclusiva

Num processo histórico, a alteração à Lei da Nacionalidade foi aprovada na Assembleia da República por uma esmagadora maioria de deputados, sem qualquer voto contra. A contra-ciclo na Europa, num tempo que todas as alterações legislativas nos domínios da imigração e acesso à cidadania são de endurecimento e anti-imigração, Portugal deu um sinal – felizmente – dissonante e aprovou, com grande consenso, uma abertura do acesso à nacionalidade portuguesa.

Note-se que a Lei da Nacionalidade não é, obviamente, uma lei qualquer. É, porventura, um dos mais sensíveis domínios legislativos, pois toca o imaginário colectivo profundo de uma nação de oito séculos. Nela se definem as fronteiras do “nós” de pleno direito. Poder ser português é uma oportunidade que permite ao “outro” ascender à verdadeira cidadania. Esta é uma lei que não se “mexe” todos os dias e a sua alteração tem, por isso, um significado extraordinário.

Assim, o facto de ter sido possível o consenso neste domínio é da maior relevância, quer pelos benefícios objectivos que dele decorrem, quer pelo exemplo que representa. Com efeito, evitar que a política de imigração seja um tema fracturante na sociedade portuguesa é uma condição essencial para desenvolver, com tranquilidade e eficácia, o acolhimento e a integração de imigrantes. Ao invés, o caminho seguido em muitas sociedades europeias – com responsabilidade de todas as partes – tem empurrado a discussão sobre políticas de imigração para terrenos muito difíceis, com posições extremadas e condições muito favoráveis para discursos populistas que invadem até as sociedades tradicionalmente mais tolerantes. Portugal soube dar um sinal diferente. Estão, por isso, de parabéns, o Governo que teve a coragem de avançar com esta proposta e os Partidos que votaram a favor desta alteração ou, no mínimo, a ela não se opuseram.

Mas esse consenso político e social mostra também que é possível dar passos significativos na abertura das sociedades de acolhimento à integração de imigrantes, mantendo o bom senso e a prudência. As poucas criticas que se ouviram pediam mais ousadia. Sugeriam nomeadamente que toda e qualquer criança nascida em Portugal acedesse de imediato à nacionalidade, independentemente da situação legal dos seus progenitores. Essa aparente generosidade traria um efeito perverso com consequências imprevisíveis, a partir da indução de um efeito de chamada de imigração irregular.

Com equilíbrio e sem imprudências, as alterações produzidas corrigem algumas injustiças antigas. As mais relevantes têm sido já devidamente sublinhadas. Em relação aos descendentes de imigrantes que nasceram em Portugal abrem-se múltiplas hipóteses de acesso à nacionalidade portuguesa: desde logo, por via originária automática, para os descendentes de 3ª geração; por via originária por efeito da vontade, para 2ª geração, com pelo menos um dos progenitores com cinco anos de residência legal no nosso país, independentemente do tipo de título que possuem. Mas as possibilidades para as crianças aqui nascidas não se esgotam nestas possibilidades. Por naturalização, abrem-se possibilidades de aceder à nacionalidade portuguesa para crianças que tenham nascido em Portugal e que completem o 1º ciclo do Básico, qualquer que seja o estatuto legal dos progenitores. Antes dessa fase ainda pode ser pedida a naturalização, se entretanto um dos progenitores completar cinco anos de residência legal. Esta é, aliás, uma das alterações mais relevantes: a contagem dos cinco anos de residência legal de pelo menos um dos progenitores ser referenciado não ao momento do nascimento mas ao do pedido de naturalização.

Mas importa ainda sublinhar mais algumas alterações substanciais: o prazo para pedido de naturalização é normalizado para todos os candidatos – seis anos - independentemente da sua nacionalidade; deixa de ser tido em consideração a capacidade financeira como requisito para acesso à nacionalidade e a consideração de todos os tipos de títulos legais de permanência ou residência em Portugal.

É evidente que todas as alterações introduzidas visam uma maior abertura à cidadania inclusiva daqueles/as que se querem identificar com um destino comum – Portugal - do qual passam a ser também plenos protagonistas. Portugal, através dos seus orgãos de soberania, representando todos os portugueses, abriu os braços a estes novos portugueses. Com um encargo de deveres e um crédito de direitos, deles/as é esperado não só o óbvio respeito pelo nosso património cultural, linguístico e civilizacional, que passam a compartilhar, mas sobretudo que sejam capazes de acrescentar a sua especificidade, tornando a nação portuguesa mais rica, porque mais diversificada. Com eles, Portugal fica maior e mais forte e, juntos, poderemos construir um país do qual nos orgulharemos.

18 fevereiro 2006

Encontro e desencontros de civilizações - O século cristão do Japão



1. Razão de ser. Balanço da prata e da fé.

Num tempo conturbado, atravessado por novas erupções do denominado “choque de civilizações”[i], onde se redesenha o mundo em função de previsíveis colisões entre civilizações, conformadas por culturas e religiões, constitui um desafio viajar a outros passados, tão diferentes na forma, quanto iguais na essência. A História é sempre um terreno fértil de aprendizagens, duma humanidade que, em situações diferentes, se repete todos dias. A análise procura perscrutar em que medida os choques de civilizações acontecem pelo conflito entre diferenças que estas encerram ou se, pelo contrário, o seu motor se encontra nas semelhanças, intrinsecamente ligadas à natureza humana, quer individual quer colectivamente considerada, como, por exemplo, o desejo de poder e de domínio.

Nesse olhar pela História, à procura de outros “choques de civilizações” surge como momento referencial e paradigmático o chamado “século cristão do Japão”, especialmente no seu epílogo, já em pleno séc. XVII. Na abertura aos “bárbaros do sul”, esses portugueses intrépidos da era dos Descobrimentos, o Japão feudal descobriu, acolheu e, finalmente, rejeitou violentamente uma ponte entre dois mundos quase opostos que, por décadas, se tocaram. Revisitar esse período histórico à procura das raízes desse choque civilizacional, cheio de encontros e desencontros de gentes e de culturas, é o foco onde se tenta testar a equação enunciada. Perceber melhor os comos e os porquês, descortinar em que medida a tradição, a religião, a economia e a política contribuíram para unir e separar o Cipango[ii] revelado aos navegadores portugueses do mundo ocidental, é o desafio.

Camões, com o seu fino olhar contemporâneo, sintetizava assim esse destino então abraçado: “È Japão onde nasce a prata fina / que será ilustrada com a Lei divina[iii]. Tentar perceber o quanto pesou a prata e a fé[iv] na balança dos desentendimentos é a contabilidade que se fará nas próximas linhas, a que se acrescentará o encontro de contas entre o vai-vem do pêndulo que, sequencialmente, nos aproximou e afastou do que era diferente. Como método, uma série de colóquios imaginários entre figuras nucleares deste processo que aqui convocamos para este reencontro, onde os jesuítas e os daimios e shoguns japoneses são protagonistas.


2. Colóquio entre Luis Fróis[v], Alejandro Valignano[vi], Miguel Chijiwa[vii] e Julião Nakaura[viii], à volta dos encontros e desencontros nas tradições, no modo de ser e na religião .

Para esta conversa, Fróis traria seguramente as memórias tão brilhantemente descritas no seu Tratado sobre a diferenças entre a Europa e o Japão[ix]. Metodicamente, não deixando nada de fora, como era seu hábito, o ilustre jesuíta recordaria dos japões “como são muitos dos seus costumes tão remotos, peregrinos e alongados dos nossos que quasi parece incrível poder haver tão opósita contradição em gente de tanta polícia, viveza de engenho e saber natural como têm[x]. Desfilaria exemplos, sem conta, de contrastes, a preto e branco – “nós usamos do preto por dó; e os japões do branco[xi]” - no comportamento dos homens, das mulheres ou das crianças, das armas e da guerra, da arte e da alimentação, da religião e da literatura. Exactamente, 609 exemplos. Mais do que duas linhas paralelas que nunca se tocam, ele mostra dois eixos de sentido oposto. Mais do que nos antípodas do globo, coloca a Europa e o Japão nos extremos opostos das tradições e dos costumes. E no entanto....
Nessa altura, Miguel e Julião interrompê-lo-iam. Talvez lhe começassem por recordar que as diferenças que se cruzavam nesse tempo despertavam curiosidade mútua, não só à chegada dos portugueses ao cais de Tangashima e Nagasaki, com uma multidão agitada perante o exótico desfile de outras gentes e outros trajos, como nos imponentes palácios de Miyako, aos pés do shogun. Por outro lado, perante a Embaixada dos príncipes japoneses à Europa, na qual tinham tomado parte, o entusiasmo dos europeus em conhecer aquele povo distante, das terras do sol nascente não foi menor. A pompa e circunstância, na corte de Filipe II ou a solenidade em Roma, junto a Gregório XIII e Sisto V, sublinhavam um contacto civilizacional entusiasta.
Lembraria também que este seu interlocutor, Luís de Fróis, se tinha tornado num profundo conhecedor da História do Japão, sobre a qual tinha elaborado uma notável obra, só possível porque tinha aprendido japonês com grande dedicação. Aliás, a aprendizagem aprofundada do Japonês representava uma opção de raiz. “Em Yamaguchi o estudo da língua do país foi tarefa diária dos missionários de 1551 a 1556 e em Funai houve uma verdadeira escola de japonês desde 1553.(..) Lições continuas de língua depois de 5 anos de estadia no Japão indicam a convicção de que a língua era essencial para comunicar a sua mensagem. Assim também o entenderam os missionários que se seguiram, até ao ponto de produzir obras admiráveis (em japonês)[xii]
Mais ainda sublinharia como tinham eles – Miguel e Julião - aprendido, por exemplo, latim e música ocidental – que, por sinal, os japoneses detestavam – a tal ponto que no regresso ao Japão presentearam o shogun Hideyoshi com um concerto de harpa, clavicórdio, alaúde e violino. Esse intercâmbio, no que se refere à música, radicava no esforço de Aires Sanches, artista de viola de arco que, desde 1561, havia fundado a primeira escola de música europeia, tendo sido director da primeira orquestra de instrumentos europeus no Japão.
Também no léxico do Japão palavras como veludo, capa, manto, botão, calção, meias, sabão, vidro, biscoito, pão, tabaco, missa ou cadeira, são heranças dessa passagem portuguesa. E isto fazendo coexistir o “patente orgulho dos japoneses de meados do séc. XVI – recorde-se o desprezo em relação aos chineses e aos “bárbaros do sul” – suavizado com um espirito aberto e receptivo que pode considerar-se menos esperado em nações e comunidades insulares[xiii] Em contrapartida, a cerimónia do chá ou o culto dos jardins tradicionais japoneses chegaram à cultura europeia, através dessa janela, aberta durante um século.

Agora seria a vez de Valignano[xiv] tomar o fio do pensamento. Que bom era se a história tivesse sido feita só desses frutuosos encontros. Mas as disputas entre os padres jesuítas e os bonzos, iniciadas logo com Francisco Xavier replicaram-se noutras áreas. No universo inter-civilizacional, mas também intra-civilizacional. Por exemplo, era impossível ignorar as discussões havidas entre ele, enquanto Visitador dos jesuítas e o então superior local, Francisco Cabral, em 1579. Ou pior ainda, no confronto com as posições de Roma. Em presença, duas correntes que, no Oriente, se confrontaram sucessivamente, nomeadamente no Japão e na China, entre uma visão que defendia o “despojamento dos adornos europeus” e que compreendia que “se a mensagem universal da fé cristã queria ser aceite pelos chineses e japoneses, aspectos exteriores secundários tinham que ser abandonados ou modificados, por forma a adaptar-se ao temperamento e tradições de povos que até então tinham vivido totalmente isolados das correntes de pensamento europeu[xv] e, obviamente, outra que nada disto aceitava, impondo a todo o preço – e em todos os contextos – o padrão europeu. Numa opção visionária – e fora da mentalidade dominante desse tempo.. - ele tinha proposto que teriam que ser “os europeus (missionários e não) que têm que se adaptar às regras do país em que operam e não impor indiscriminadamente as suas próprias ideias e os próprios hábitos[xvi]. Essa perspectiva era saliente para quem visitava o Japão, em 1597:
D. Pedro de Figueroa Maldonado según Schilling-Lejarza en su Relación sobre los sucesos del japón dice hablando de la facilidad con que los Padres de la Compañía se acomodaron al modo de ser de los japones que no habia visto ni oido, de otros que tanto deseasen imitar a ellos “porque visten sus trajes, hablan su lengua, omen como ellos en su suelo, sin manteles ni mesa, ni servilletas, ni con la mano, sino con un palillo, que aun para esto se han dado maña, haciendo las mismas cerimonias los japones que elllos se hacen unos a otros. Y tienem para esto compuesto un libro para leer a los estudiantes en el seminario, intitulado Das costumes y cerimonias del Japón[xvii]

E, apesar da aparente vitória das teses de aculturação – como foi também o caso da disputa de Valignano com Cabral – em determinado momento, esta linha regrediu e, no final, vingou a perspectiva ortodoxa eurocêntrica, numa afirmação de poder central e hegemónico. Com resultados trágicos, diga-se.
Aqui, a conversa ficaria mais difícil. Viria à memória a incompreensão dos japoneses que tinham aderido à Companhia de Jesus, nomeadamente nas dificuldades em compreender e aceitar o rigor da regra jesuíta ou das hierarquias sempre comandadas por europeus. Muitos “se ressentiam de lhes serem mandados fazer coisas que eles consideravam que iam contra os costumes e convenções japonesas” determinados por alguns europeus que “não compreendiam totalmente ou não apreciavam o modo de vida japonesa”. Mas também “ deviam sentir uma divisão de lealdades – lealdade para com a sua religião e a sua ordem e por outro lado para com o seu país e senhor feudal” . E a isto acresce “uma diferença de natureza psicológica, dado os europeus serem frequentemente directos, com personalidades extrovertidas, em contraste com o caracter reservado, sensível e introvertido dos japoneses[xviii].

Nessa altura, Miguel levantar-se-ia e, sem palavras, abandonaria o colóquio. Na sua mente bailava o momento em que, perante a tortura e o risco de vida, tinha apostatado, deixando de lado tudo o que tinha absorvido da fé e da cultura ocidental, para poder sobreviver. No seu fumie[xix], desfazia-se a ponte civilizacional e religiosa, sobrepondo-se a fidelidade à sua origem e ao seu senhor terrestre. Os lideres japoneses, nomeadamente o seu senhor Yoshiaki Omura, respondiam assim - arrasando violentamente toda a presença cristã nos seus reinos - ao medo crescente do poder que os estrangeiros começavam a evidenciar, em muitos domínios.

Julião continuava calado. Ao longo de todo o colóquio, a sua vida tinha desfilado, na sua memória, como um filme[xx]. Da aventura trepidante da embaixada à Europa, recebida com fausto e carinho por reis e papas, até aos momentos de tortura na prisão de Kurusu-cho e o martírio em Nishinosaka, em 1633, tentava entender o sentido da sua vida. Nascido japonês, adoptou o cristianismo, ao ponto de se tornar padre jesuíta. Foi protagonista da construção de uma ponte entre dois mundos e, quando ela se desfez, ficou do lado que lhe custou a vida, fiel ao seu “senhor celeste”. Foi vítima da sua fé e da intolerância religiosa? Certamente. Mas não fora a sua fé ser associada – justa ou injustamente - a uma civilização “invasora” que se assumiu como ameaça para os poderes instalados, provavelmente o martírio não teria acontecido.

3. Colóquio entre João Rodrigues[xxi] e Toyotomi Hideyoshi[xxii], à volta dos encontros e desencontros na política, na diplomacia e na economia.

Pode parecer estranho este colóquio entre um simples jesuíta - chegado jovem ao Japão, provavelmente em 1576 - e o todo poderoso shogun Hideyoshi, senhor de um Japão unido à força das armas e temido pelas suas explosões intempestivas. A política, a diplomacia e a economia não é o terreno mais esperado para a intervenção de um padre da Companhia de Jesus. Mas Rodrigues Tçuzzu[xxiii] não era um jesuíta qualquer. Tinha aprendido, como ninguém, a língua desta terra de missão, seguindo as orientações de alguns dos seus predecessores, apesar de outros “considerarem quase uma fraqueza da parte dos europeus estudar uma língua indígena[xxiv]”. A sua entrada na Companhia de Jesus dá-se em 1580 e ao longo da sua formação vão-se evidenciando qualidades entre as quais se distinguem sensibilidade diplomática e negocial, acima da média e sobretudo esse notável dom de fazer a ponte, enquanto interprete, entre dois mundos tão distantes[xxv].

Já no leito da morte, em 1598, Hideyoshi recebe uma vez mais Rodrigues, como tantas vezes o tinha feito[xxvi]. É aí que colocamos este colóquio imaginário, onde se revêem os últimos anos de uma história comum e se antecipam os que se seguem até à expulsão de Tçuzzu .

O shogun nutria por aquele intérprete uma particular admiração. Rodrigues conhecera-o, quando, em 1591, acompanhava Valignano[xxvii] na primeira embaixada europeia à corte japonesa. Nessa altura, Hideyoshi pediu-lhe que ficasse, mesmo depois da comitiva partir e não escondeu o encanto duma nova experiência ao ouvir um jovem europeu falar fluentemente o japonês[xxviii].
Tinham, então, passado 4 anos[xxix] desde um encontro de Hideyoshi com outro jesuíta, Gaspar Coelho - provavelmente menos hábil e desconhecedor da mentalidade do shogun – encontro esse que antecedera o primeiro édito de expulsão dos missionários. É curioso recuperar e sublinhar o tema da conversa. “ As indiscretas ofertas de auxilio cristão feitas por Coelho, umas horas antes, podem ter provocado as suspeitas de Hideyoshi de que os missionários e os seus seguidores estivessem a tornar-se desconfortavelmente influentes, pois as propostas podiam ser feitas com a mesma facilidade a qualquer outro daimio[xxx]”. Este primeiro gesto fortemente hostil – apesar de não ter sido executado com rigor e violência, como o seria mais tarde – nascia, não das diferenças culturais e religiosas patentes entre duas civilizações que então se encontravam, mas do medo gerado por um – eventual – excesso de poder. O desencontro e afastamento que aí começa tem, mais uma vez, raiz na expressão universal da natureza humana expressa, por exemplo, na ambição de poder, de conquista e de domínio. Faltava só a intriga e a inveja. Mas não tardou que se somassem.
Apesar do Papa ter concedido a missão do Japão, em exclusivo, à Companhia de Jesus e os portugueses deterem o controle do comércio[xxxi], começaram-se a registar incursões, a partir das Filipinas, de outras Ordens religiosas e com os interesses associados dos castelhanos, bem como de holandeses e ingleses a partir de outros pontos. E as divisões entre cristãos começaram, animadas por um desejo de prevalência, de uns sobre outros.

De novo, a natureza humana, agora entre “iguais”.

O recurso à intriga multiplicou-se e, em pouco tempo, estava criado um clima de guerra aberta intra-ordens religiosas e intra-europeus – portugueses e castelhanos – ironicamente, nesse tempo, sob a mesma coroa. Tudo se complicou definitivamente com a crise, em Outubro de 1596, da nau S. Filipe[xxxii]. Vinda das Filipinas e do México, com o intuito de fazer comércio, naufraga nas costas do Japão, carregada de valiosas mercadorias. Hideyoshi ordena a confiscação do bens e, quando se entra em negociações para recuperar o espólio, terá sido indicado pelo piloto do navio que “o rei de Espanha tinha constituído um largo império enviando os missionários à frente para preparar o caminho. Fora assim que as Filipinas se haviam tornado espanholas, declarou e salientou que as regiões das Filipinas que eram cristãs eram sujeitas ao rei de Espanha enquanto que a parte que permanecera não cristã não reconhecia a sua soberania[xxxiii]”. A resposta de Hideyoshi não se fez esperar. Manda executar, na manhã de 5 de Fevereiro de 1597, vinte e seis cristãos, entre os quais quatro espanhóis, um mexicano, um indo-português e vinte japoneses, cruxificados em Nagasaki. E escreve para as Filipinas, dizendo “...fui informado que nos vossos reinos a propagação da lei (i.e. do cristianismo) é uma habilidade e engano pelo meio dos quais depois conquistais outros reinos[xxxiv]” . Não se sabe se o shogun teria conhecimento de que em 1519, Hernan Cortez, tinha conquistado o México e, em 1532, Pizarro tinha subjugado os Incas e conquistado o Perú. Mas, se acaso não tinha, intuiu o perigo.

Apesar dessas memórias difíceis, na conversa que retomariam no nosso colóquio, Hideyoshi e Rodrigues recordariam como ainda nesse tempo prevaleciam interesses comuns, estruturados principalmente à volta do comércio que os portugueses protagonizavam. É de notar que a fácil aceitação do comércio vs. a rejeição de intervenções mais profundas na cultura e na religião sinalizavam que os japoneses veriam, provavelmente, no comércio uma ameaça menor que a “colonização” cultural e religiosa.
A troca da prata japonesa pela seda da China que os portugueses traziam a partir de Macau era suficientemente importante para que Hideyoshi aceitasse uma presença discreta e inofensiva dos missionários. Mas não mais que isso. E os jesuítas, ao contrário de outros, tinham percebido o quão importante era trabalhar sem alaridos e, sobretudo, manter as pontes. Rodrigues desempenhou meticulosamente essa missão, ao longo de anos. Mas também ele se deixou cair nas armadilhas que terrenos pantanosos sempre oferecem.

Já depois da morte de Hideyoshi – de quem o nosso jesuíta se despediu no leito da morte – e tendo o poder sido assumido pelo shogun Ieyasu Tokugawa, João Rodrigues foi “designado seu agente comercial em Nagasaki e (Ieyasu) anunciou que para o futuro os mercadores portugueses deviam fazer as transacções por seu intermédio[xxxv]”. Esta posição de enorme poder era, inicialmente, de uma grande utilidade para os jesuítas que, dessa forma, financiavam as suas missões, obviando as dificuldades da permanente falta de fundos que Goa, ou mesmo Lisboa, não lhes providenciava. Os interesses inicialmente convergentes entre missionários, mercadores e funcionários japoneses foram-se incompatibilizando – o desejo incontido de lucros crescentes é mais uma semelhança entre protagonistas de diferentes civilizações - até ao desentendimento total por causa desses mesmos negócios, simbolizado no episódio da navio “Madre de Deus”, capitaneada por André Pessoa. As acusações cruzadas de Rodrigues estar ao serviço do “outro” lado, habilmente manipuladas junto do shogun levaram a que, em 1610, fosse obrigado a abandonar o Japão, onde nunca mais regressaria apesar das suas insistências. Já foi de longe que lhe chegou a notícia do édito de 27 de Janeiro de 1614, em Ieyasu Tokugawa expulsa os missionários e inicia a mais terrível perseguição que termina em 1639 com o total encerramento do Japão[xxxvi] – Sakoku - aos contactos com o Ocidente, o que durou mais de 200 anos[xxxvii].


4. Conclusões – Porque somos todos semelhantes...

O Século Cristão do Japão evidencia, pois, de uma forma cristalina, a tese que aqui se defende. Os colóquios – imaginados na forma, mas exactos nos factos – sublinharam como na cultura, na religião ou na economia, ontem mas também hoje, mais do que as diferenças, são as semelhanças do género humano que geram os conflitos. As nossas diferentes civilizações chocaram, chocam e chocarão porque todos ambicionamos, em algum momento, conquistar, dominar e assimilar o “outro”.

Segundo Huntington, no último parágrafo da sua obra, “os choques civilizacionais são a maior ameaça à paz mundial e uma ordem internacional, assente nas civilizações, será a mais segura salvaguarda contra uma guerra mundial[xxxviii]”. Também o século nanbam evidenciou que outro caminho, que não o diálogo e o respeito entre civilizações, só gera dramas e tragédias. Conviria que a humanidade não esquecesse isto.




Notas
[i] S. Huntington “ Choque de civilizações e a mudança na ordem mundial”; Gradiva, 1996
[ii] Designação do Japão nas descrições existentes desde o séc. XIII, referida nomeadamente por Marco Polo, que dela tinha ouvido falar nas suas viagens e que Colombo julgou ter achado em 1492.
[iii] Como Camões descreve, no Canto X, Estrofe 131 dos Lusíadas, o olhar dos portugueses sobre Japão.
[iv] Ver Canaveira, M.F. “É o Japão, onde nasce a prata fina..” ; Revista Oceanos – O Regresso ao Japão; 1993
[v] Luis de Fróis, sacerdote jesuíta português (1532-1597) que em 1563 chegou ao Japão onde esteve até 1592. É o mais importante autor europeu sobre esta época, sendo de destacar a sua obra “História do Japão”, as inúmeras cartas que escreveu e, sobretudo, dois tratados, um sobre a diferenças entre a Europa e o Japão e outro sobre a embaixada dos 4 jovens japoneses à Europa.
[vi] Alejandro Valignano, jesuíta italiano, visitador das missões na Ásia em 1573. Esteve no Japão por três ocasiões – 1579-82; 1590-92 e 1598-1603.
[vii] Miguel Chijiwa foi um dos um dos quatro membros da Embaixada à Europa (1582), encarregue de recolher apoio do Papa e de Filipe II para a evangelização do Japão, mas também para recolher informação sobre a Europa para a apresentar aos japoneses.
[viii] Julião Nakaura, jesuíta japonês, membro da mesma Embaixada à Europa. Morreu como mártir em 1633.
[ix] Ver Loureiro, R.M.; “A visão do outro nos escritos de Luis de Fróis SJ”; Colóquio “O século cristão do Japão”, CEPCEP/UCP;1993
[x] In Fróis, L. “Europa , Japão – Um diálogo civilizacional no séc. XVI” , CNCDP, pag. 52
[xi] In Fróis, L. “Europa , Japão – Um diálogo civilizacional no séc. XVI” , CNCDP, pag. 61
[xii] Ruiz-de-Medina, Juan ; “Interacción cultural en Oriente antes de Mateo Ricci”; Colóquio “O Século Cristão do Japão”, 1993
[xiii] ib, idem
[xiv] Ver Canaveira, M.F. “Alessandro Valignano, Visitador da Companhia de Jesus no Império do Sol Nascente”; Revista Oceanos, O Regresso ao Japão; 1993
[xv] ver Cooper, M. “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, 1994, pag. 53
[xvi] Radulet, Carmen M., “O Cerimonial do Pe. Alessandro Valignano”; Colóquio “O Século Cristão do Japão”, 1993
[xvii] Schilling Lejarza, Relación del Reino del Japón, citado em Ruiz-de-Medina, Juan ; “Interacción cultural en Oriente antes de Mateo Ricci”; Colóquio “O Século Cristão do Japão”, 1993
[xviii] Cooper, M. “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, 1994, Pag. 184
[xix] Gesto de pisar um cruxifico ou uma imagem cristã como sinal de apostasia
[xx] “Os Olhos da Ásia” , de João Mário Grilo
[xxi] João Rodrigues, jesuíta português (1561-1633) foi missionário no Japão entre 1576 e 1608, tendo sido expulso nessa data. Publicou em Nagasaki, em 1604, a obra “Arte da Língua do Japão”. Projectou ainda uma História da Igreja do Japão, para qual recolheu abundante material mas que não chegou a realizar. Ficou conhecido pelo nome de Tçuzzu, que significa “interprete”.
[xxii] Toyotomi Hideyoshi, shogun que sucedeu a Oda Nobugana, em 1582, unificando o Japão, missão que conclui em 1590. Mantém uma relação ambivalente com os missionários, aceitando-os como contrapartida do comércio com os portugueses. É, no entanto, responsável pelo primeiro édito de expulsão e pelo primeiro martírio. Morre em 1598.
[xxiii] tçuzzu, significa intérprete
[xxiv] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Intérprete” , Quetzal Editores, pag. 69
[xxv] cf. Bacelar e Oliveira, J. ; “Notas sobre o Padre João Rodrigues Tçuzzu”, Actas de “O Século Cristão do Japão”, pág. 395
[xxvi] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Intérprete” , Quetzal Editores, pag. 191
[xxvii] Valignano foi mandatado, em 1588, pelo Vice-Rei da Índia, D. Duarte de Menezes, para organizar e dirigir uma embaixada ao Japão, confiando-lhe uma carta pessoal para Hideyoshi e enviando muitos e valiosos presentes.
[xxviii] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Intérprete” , Quetzal Editores , pag. 83
[xxix] 2 de Julho de 1587
[xxx] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Intérprete” , Quetzal Editores, pag. 63
[xxxi] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, pag. 125
[xxxii] ver Castelo, C. “1597, O primeiro martírio” Revista Oceanos – O Regresso ao Japão, 1993
[xxxiii] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, pag. 147
[xxxiv] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, pag. 163
[xxxv] cf. Cooper, M “Rodrigues, o Interprete” , Quetzal Editores, pag. 204
[xxxvi] ver Leitão, A.N. “1623, O Afastamento”; Revista Oceanos, O Regresso ao Japão, 1993
[xxxvii] cf. Kodansha`s Encyclopedia of Japan, National Seclusion – Sakoku
[xxxviii] Huntington, S. ; “O choque de civilizações”, Gradiva, 1996, pag. 380



Bibliografia

Cooper SJ, Michael(1994)Rodrigues o Interprete, Ed. Quetzal,
Fróis SJ , Luís; Europa Japão :um diálogo civilizacional no século XVI
O Século Cristão do Japão, Actas do Colóquio Internacional comemorativo dos 450 anos de amizade Portugal-Japão; UCP, 1994
Boxer, C.; O Século Cristão do Japão
Endo, Susaku Silêncio
Obara, SJ, Satoru(1994) Christianity and the historical climate of Japan: Acceptance, rejection and transformation
Martins Janeira, Armando(1988) O impacto português sobre a civilização japonesa; D. Quixote
Oliveira e Costa, João Paulo (1999) Portugal e o Japão : o Século Nambam INCM 1993 ; “O Japão e o Cristianismo no séc. XVI”, SHIN,
Mendes Pinto, F. “Peregrinação” cap. 132, 200,208, 211,
“O Japão visto pelos portugueses” CNCDP

12 fevereiro 2006

A propósito dos últimos dias...

Pedro D´Orey da Cunha, escrevia no seu "Entre dois Mundos - Vida quotidiana das famílias portuguesas na América",(pag. 28) o que seria bom nunca esquecermos:
"Há portugueses pobres e portugueses ricos
portugueses que não sabem ler e portugueses de cultura
portugueses exploradores e portugueses explorados,
portuugeses cuja vida na América é uma miséria e portugueses que só na América encontram dignidade.

Há americanos obtusos e americanos compreensivos,
americanos que exploram o português e americanos que o ajudam,
americanos que odeiam o português e americanos que o admiram,
americanos estúpidos e americanos inteligentes.

Não concluam, portanto, o que são os portugueses e o que são os americanos.
Falem-me do João e da Teresa. da Susan e da Mary..."


Para os dias que correm, vem muito a calhar...

07 fevereiro 2006

Incendiários

A crise dos cartoons é profundamente perturbadora. Nas suas múltiplas vagas, desde Setembro passado, com a primeira publicação num jornal dinamarquês dos cartoons hostis para com o Profeta do Islão, Maomé, até aos últimos dias de re-publicação sucessiva desses (e de outros) cartoons em vários jornais europeus e de manifestações e ataques a embaixadas europeias em países islâmicos, verifica-se uma escalada irracional e particularmente perigosa.

É evidente que não pode deixar de ser reafirmado que nada justifica a reacção violenta que tem surgido em alguns países de maioria islâmica. Sem ingenuidades pueris, temos consciência que os radicais nos países islâmicos sabem,como incendiários com mestria, aproveitar estes deslizes ocidentais. Usando-os, manipulam as massas em atitudes irracionais e reforçam o seu objectivo: uma guerra de civilizações, acantonando sob a sua influência largas faixas da população que, de outra forma, não seriam mobilizáveis. Sejamos, de novo, claros: a violência que então explode também não é aceitável, nem desculpável.

Mas, sejamos honestos..Apesar do discurso justificativo em torno da liberdade de expressão, a publicação destes cartoons evidenciou três erros graves: por um lado, a agressão à comunidade islâmica através da representação humilhante do Profeta, por outro, a manipulação abusiva de associação do terrorismo ao Profeta Maomé, e ainda, num outro plano, a interpretação errada do sentido da liberdade de expressão. Na raiz desta trilogia de erros estão, entre outros, a ignorância e arrogância, defeitos muito próprios de uma civilização cheia de si própria.

Comecemos pelo facto da ofensa profunda sentida pela comunidade islâmica com a publicação destes desenhos. Parece óbvio que o autor e o editor do cartoon original não terão percebido quão ofensivo era aquele, na perspectiva de uma larga comunidade de crentes em todo o mundo. A incapacidade de se descentrar de si próprio e conhecer mais do Outro, das suas tradições e convicções, e a partir desse conhecimento respeitar o seu ponto de vista, estará na origem desse erro. É um erro clássico nos desencontros entre culturas e civilizações. Actualmente este dificuldade é agravada pela incapacidade mútua de entendimento entre sociedades essencialmente secularizadas e outras eminentemente religiosas. Ambas se olham com incompreensão e desconfiança.

Naturalmente, perante uma ofensa desse tipo - se involuntária – é exigível um pedido de desculpas do autor e aquele deve ser aceite. Mas como justificar neste caso, perante a constatação desse erro – que mereceu até um pedido de desculpas do editor dinamarquês - a repetição consciente e hostil da publicação dessas peças por outros meios de comunicação um pouco por toda a Europa? Chegámos a um infeliz patamar de arrogância e de dolo. Já ninguém pode argumentar que desconhecia o impacto tremendo dessa publicação nos crentes muçulmanos. Conscientemente, com toda a arrogância, repete-se a ofensa, ainda que em nome de um argumento politicamente correcto: a liberdade de expressão. Mas deve-se afirmar um direito, à custa de uma provocação gratuita de milhões de pessoas, nas suas convicções mais profundas? Aceitaríamos nós portugueses, por exemplo, que algum jornal estrangeiro ultrajasse os nossos símbolos nacionais – bandeira ou hino - protegido pelo argumento da liberdade de expressão?

Mais difícil é aceitar que a fusão feita entre terrorismo e Maomé – segundo erro - seja só um produto da ignorância. É abusiva e manipulatória a conexão estabelecida, como seria a ligação entre a figura de Jesus Cristo e a acção da inquisição ou com o holocausto, ainda que nestes fenómenos, de formas diferentes, tenham estado envolvidos cristãos. A esmagadora maioria dos crentes muçulmanos não são membros de movimentos terroristas e são, muitas vezes, as suas primeiras vítimas. Fazer crer largas faixas da opinião pública no Ocidente que Islão=terrorismo é não só um erro objectivo, como se trata de uma manipulação que só beneficia a consolidação de um choque de civilizações que serve os fundamentalistas de ambos os lados. A ignorância difusa sobre a verdadeira génese do terrorismo global e a arrogância de quem se considera uma “civilização superior” torna-se, neste contexto, uma mistura explosiva. São, deste lado, incendiários em campos secos prontos a arder. Desta forma estes protagonistas entretêm-se a lançar o fogo e soprar ventos.

Finalmente, o terceiro erro: a perversão da liberdade de expressão. É evidente que as democracias liberais do Ocidente se construíram tendo como base, entre outros valores, a liberdade de expressão. Esta constituiu uma alavanca dos direitos cívicos, um antídoto de totalitarismos iníquos e um reforço das democracias nascentes. É, no entanto, um valor relativo e está, nesse contexto, indexado a outros valores. Nunca é referencial único. O seu exercício não pode ser desacoplado do “para quê”. É só um meio que pode ser – ou não - justificado pelos fins. Aliás são já aceites restrições à liberdade de imprensa plasmadas na lei, desde o segredo de justiça ao direito ao bom nome.

Por isso, a afirmação da liberdade de expressão como absoluta e “sagrada”, ainda que para fins iníquos, é inaceitável.

Quando não está em jogo a violação de nenhum direito relevante – como não está no caso presente – a difusão na comunicação social de uma informação/opinião que é ofensiva de convicções, crenças e valores de alguma comunidade, a sua justificação ao abrigo da liberdade de expressão não é suficiente. Trata-se sim de um abuso que merece, desde logo, condenação ética e deontológica no âmbito da auto-regulação dos media. Mas se estes não forem capazes de se auto-regular, a sociedade deve expressar sem complexos, uma crítica clara.

É evidente que estes conflitos recentes vão quebrando pontes e afastando margens. Temos, de ambas as partes, semeado ventos: preparemo-nos pois para colher tempestades.

Por isso, esta crise foi(é) particularmente grave.

Num tempo difícil como o que vivemos, cheio de perigos e armadilhas, é fundamental um esforço colectivo de diálogo e de construção de pontes entre culturas e religiões. Há, da parte dos principais protagonistas individuais e institucionais, uma irrecusável responsabilidade social para a promoção do diálogo intercultural que urge cumprir. Conhecer o outro, respeitá-lo na sua especificidade, cultivar não só a tolerância como o afecto pela diversidade, são alguns tópicos desse diálogo. Mas para começar, convêm não agredir gratuitamente aquele com quem temos que nos sentar à mesa.

O direito de voto dos imigrantes

Ao longo da sua história, num processo de amadurecimento, a democracia tem vindo a alargar progressivamente o universo de eleitores e de elegíveis. Desde o modelo ateniense, limitado a um pequeno número de cidadãos (sem mulheres, nem escravos, nem estrangeiros), passando pelas aquisições igualitárias da Revolução Francesa e pelas novidades decorrentes da independência dos EUA (entre as quais, o princípio “no taxation without representation”), seguiram-se depois, já nos séculos XIX e XX, as lutas das sufragistas e dos líderes negros, pelo direito ao voto das mulheres e dos negros. De uma pequena elite de cidadãos foi-se expandindo a participação democrática até um modelo expresso na máxima “um Homem, um voto”. Embora seja quase sempre de natureza representativa, a democracia actual tende a envolver intensamente no destino comum todos os indivíduos que assim são chamados a participar no processo democrático. Dessa forma se reforça o exercício da cidadania com construção de uma comunidade de destino.

Este aperfeiçoamento, muito marcado pelo reconhecimento da dignidade da Pessoa – de todas as Pessoas – e pelo princípio da igualdade, tem hoje um novo e determinante desafio: o direito de voto dos imigrantes na sociedade de acolhimento.

Com efeito, a dimensão crescente das migrações no início deste século XXI, com a tendência do estabelecimento dos imigrantes por longos períodos, coloca os países de acolhimento numa encruzilhada complexa: é sustentável manter um número relevante de cidadãos imigrantes, cumpridores dos seus deveres para com a sociedade de acolhimento – nomeadamente fiscais e legais - fora do processo de participação política? É sensato excluir dos canais democráticos de representação e defesa dos seus interesses, de mobilização para um bem comum e de co-responsabilidade pelo destino colectivo, um número significativo de pessoas, ainda que imigrantes?

Não é sustentável, nem sensato, nem muito menos justo.

Desde logo, porque em democracia, quem não tem direito de voto, não existe. È um “não-cidadão”. Fica à margem. Por isso, níveis crescentes de coesão social, de envolvimento no desenvolvimento sustentável, de co-responsabilidade cívica, de igualdade e ausência de discriminação, exigem que imigrantes sejam convocados à participação política.

No caso português, prevê a Constituição que os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal possam beneficiar do direito de voto (artº 15º, nº 4 CRP), em condições de reciprocidade, ao nível das eleições locais. Este princípio é justo e configura, ainda que de uma forma tímida e incipiente, a opção política de fundo por uma democracia inclusiva. Importa, no entanto, questionar se os limites impostos - a reciprocidade e a limitação às eleições autárquicas - fazem sentido.

Quanto à reciprocidade, embora se aceite como princípio justo e desejável, deveria ter um caracter indicativo e não obrigatório. Muitas vezes, por razões diversas – políticas, sociais e económicas - os países de origem tendem a não acolher com entusiasmo a criação de vínculos estáveis dos seus emigrantes com as sociedades de acolhimento. A não aceitação da reciprocidade surge então como um subterfúgio fácil para inviabilizar esta ligação. Mas, o que ganha efectivamente Portugal com deixar de fora muitos imigrantes originários desses países exclusivamente por causa dos seus países de origem não estarem disponíveis para a reciprocidade? Nada, rigorosamente.

Estabelece-se também uma limitação no âmbito dos actos eleitorais, excluindo as eleições legislativas e presidenciais. Embora se reconheça a importância da participação a nível local, por todas as mais-valias decorrentes da integração dos imigrantes na comunidade de proximidade, não é lógico, nem aceitável que se limite a esse nível a participação política.

Note-se, no entanto, que esta abertura à participação política tem como pressuposto a existência de uma efectiva ligação a uma “comunidade de destino”. Embora a Constituição não o imponha actualmente e seja difícil uma métrica inequívoca, a plena participação política dos imigrantes deve estar condicionada – pelo menos, num período transitório - ao estatuto de residente de longa duração, servindo para tal de referência a Directiva comunitária que define um período de cinco anos de permanência legal para adquirir esse estatuto.

As democracias liberais mais avançadas devem ter a coragem de dar um passo de abertura à plena participação política – activa e passiva e em todos os actos eleitorais - de imigrantes residentes de longa duração.

Portugal, com as necessárias alterações constitucionais e na lei eleitoral, pode e deve estar na primeira vaga dos países que - sabiamente - optarão por esta expansão da democracia. Com tranquilidade e com base num consenso social e político alargado, deve aproveitar o ciclo de quatro anos sem eleições para que em 2009 já possa contar com a plena participação política dos imigrantes.

Desta forma, garantirá não só a concretização de um princípio justo, mas também uma melhor integração dos imigrantes, fazendo-os sentirem-se parte de pleno direito da nossa sociedade e estimulando-os a assumir, com maior convicção, as suas responsabilidades cívicas. Ganharemos todos com isso.