26 março 2006

Cardeal de Los Angeles defende imigrantes ilegais


Em recente artigo (22 Março de 2006) com o título “Called by God to help”, o Cardeal Mahony, de Los Angeles, reafirma a sua posição - alvo de grande criticismo dos conservadores norte-americanos - de desobediência civil à nova lei de combate à imigração ilegal que havia expresso no ínicio de Março, no arranque da Quaresma.
Não temendo a ameaça ditada pela lei de cinco anos de prisão para aqueles que apoiem imigrantes em situação irregular a permanecer nos EUA, o Cardeal Mahony deu instruções inequívocas às paróquias e outras instituições da Igreja católica para manterem o apoio humanitário aos imigrantes, sem preocupação sobre qual é o seu estatuto legal, deixando claro que “recusar ajuda a um ser humano viola uma lei com mais autoridade que a do Congresso – a lei de Deus”.
No seu artigo torna claro que a Igreja Católica não encoraja, nem apoia, a imigração ilegal, desde logo porque conhece bem os dramas vividos por estes imigrantes e sabe o que sofrem pela desprotecção total. Defende, no entanto, a agilização de canais legais de imigração que protejam os migrantes e a nação americana, sublinhando que posições exclusivamente securitárias não resolvem nada, agravando ao invés o problema. Deixando claro que, ultimamente, esta é uma questão ética e moral, o Cardeal Mahony deixa a esperança que se inverta esta iniciativa legislativa e “se respeitem os valores – justiça, compaixão e oportunidade – sobre os quais a nossa nação, uma nação de imigrantes, foi construída”.

25 março 2006

A evolução do modelo multicultural canadiano

O modelo multicultural canadiano tem sofrido uma evolução que Fleras e Elliot (2002) definem de uma forma interessante, sublinhando três etapas: de uma fase inicial, nos anos 70, onde destacam a sua dimensão étnica, com a metáfora do mosaico cultural a guiar a sua construção, para uma etapa posterior, nos anos 80, onde o discurso se centra na equidade, concretamente na igualdade de oportunidades, usando como metáfora a "nivelação" até finalmente nos anos 90 se chegar ao multicultiralismo cívico, onde se sublinha sobre tudo o combate à exclusão social, por via da inclusão e se utiliza a metáfora da "pertença". Este foco na construção de uma sociedade inclusiva, onde se apela a uma cidadania plena de todos os cidadãos, sem que devam abdicar dos seus traços distintivos representa um forma muito distante do modelo criticado de fragmentação e de "ilhas sem pontes" que os adversários do multiculturalismo apontam. É evidente que falta ainda a este fase do multiculturalismo cívico a afirmação mais clara de uma perspectiva de interelação e de miscigenação como dimensões estruturantes. O salto para a interculturalidade ainda não é expresso inequivocamente. Mas já não está longe.

Demasiado iguais - Esse é o verdadeiro problema...


“Ele humilhou-me, impediu-me de ganhar meio milhão, riu dos meus prejuízos, zombou dos meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se afastassem, encorajou meus inimigos.
E tudo, por quê? Por eu ser judeu.
Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morreremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?
Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo cristão? Ora, vingança.
Hei de por em prática a maldade que me ensinaste, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda”.

"O Mercador de Veneza", de Willian Shakespeare - Acto III, Cena I


Nota: Testemunho do judeu Shylock (interpretado por Al Pacino no filme "O Mercador de Veneza" de Michael Radford )em tribunal onde reclamava como compensação de um empréstimo não pago, meio quilo da carne do devedor, o cristão António (interpretado por Jeromy Irons). A corte veneziana terá que decidir da aplicação desta indemnização. Vale a pena ver o filme.

A culpa é do outro

"Nos finais do século XV aparece a sífilis, de cuja propagação se acusa sempre os outros, os inimigos. Para os italianos era o “mal francês”, porém os franceses chamavam-lhe o “mal napolitano”; os espanhóis baptizaram a doença como o “mal alemão” e os flamengos chamaram-lhe o “mal espanhol”; para os russos era ‘o mal dos polacos', e para os turcos, ‘o mal dos cristãos'."

El País Semanal, 11 de Outubro de 1992, p. 62

Nota: Ver a este propósito um interessante artigo de Sérgio Carrara, " A geopolítica simbólica da sífilis: um ensaio de antropologia histórica"

24 março 2006

Os “nossos” e os “outros”

Nas últimas semanas tem tido elevado destaque mediático a expulsão de emigrantes portugueses que permaneciam ilegalmente no Canadá. Recorrentemente tem sido sublinhado o drama humano de famílias com a sua vida instalada já há alguns anos naquele país e que, de um dia para o outro, se vêem obrigados a sair, pois aí não tinham autorização para permanecer e trabalhar. O governo canadiano, aparentemente, decidiu aplicar com mais rigor a lei vigente há dez anos e fazer executar as expulsões de imigrantes em situação irregular.

Nenhum de nós – começando pelos jornalistas – deixa de ser sensível ao facto que compatriotas nossos vejam, em poucos dias, o sonho da sua vida de emigrante desfeito em pó. A identificação com as vítimas ocorre naturalmente. Afinal, que mal faziam estes portugueses à sociedade canadiana? Trabalhavam - ainda que para isso não tivessem autorização – e faziam a sua vida sem incomodarem ninguém...Ouve-se por aí: “como é que os canadianos se atrevem a fazer isto aos nossos?!”

Simultaneamente, ocorriam em Portugal as maiores operações conhecidas de detecção de imigrantes em situação irregular. Numa só acção foram notificados para abandonar o país, 234 imigrantes brasileiros nessa situação que se encontravam numa festa. Curiosamente, em nenhuma notícia – nenhuma, sublinho - era destacado que, nesse momento, se desfazia o sonho daqueles imigrantes que eram obrigados a abandonar o país, nem se tinha em conta o drama humano inerente. Estaríamos perante “coisas” e não pessoas? O tom da descrição era policial, com sublinhado do aparato usado e das aparentes razões de queixa dos comerciantes vizinhos. Surgiram expressões como “caça a ilegais” e “combate a ilegais”.

Perante o mesmo fenómeno – a expulsão de imigrantes em situação irregular – como avaliar eticamente esta diferença de atitude, conforme se estamos a falar de “nossos” ou dos “outros”? Como admitir que, num caso, condenemos a atitude de um Estado soberano e noutro, a apoiemos? Que, numa situação, sintamos compaixão com os que sofrem a expulsão e noutra essa compaixão seja esquecida?

É um caso típico de “dois pesos, duas medidas”.

Este contraste deve fazer-nos reflectir. Primeiro que tudo, na clarificação do fenómeno da imigração irregular. No discurso mediático e na opinião pública há frequentemente uma associação, ainda que implícita, de “imigrante irregular = criminoso”. Ora, como percebemos agora pelos “nossos” não é assim. Na sua esmagadora maioria, os imigrantes em situação irregular são pessoas que permanecem e trabalham num dado país, não tendo para isso autorização desse Estado. Não são criminosos: são trabalhadores não autorizados. É muito diferente. Merecem, por isso, um tratamento humano e uma compaixão expressa a todos os níveis: nomeadamente social, mediático e político.

Note-se, no entanto, que isto não equivale a que a lei de entrada, permanência e saída de estrangeiros de cada país não deva ser – como qualquer lei – integralmente respeitada. E neste domínio temos que ser coerentes: o princípio é válido quer para Portugal, quer para o Canadá. Nenhum Estado soberano pode abdicar da gestão das suas fronteiras e do seu mercado de trabalho. Por isso, os circuitos de imigração irregular devem ser combatidos e desincentivados. Mas esse objectivo só se consegue com uma política de admissão de imigrantes em situação legal que funcione agilmente. E se é certo que não podemos viver em regime de regularizações extraordinárias sistemáticas, temos que ter respostas inteligentes e humanas.

Por outro lado, quando aos imigrantes indocumentados é aplicada a lei, com eventuais medidas de afastamento, deve-o ser tendo em conta o pleno respeito pela dignidade humana que começa na acção das autoridades e termina na mentalidade e nas atitudes de cada um de nós, passando evidentemente pelos jornalistas que constróem a notícia destas operações policiais.

Mas, no que se refere à fiscalização e penalização, é fundamental que se concentrem esforços nos que tiram partido da imigração irregular: desde as máfias, até aos empregadores na economia informal que abusam do trabalho imigrante, passando por aqueles que exploram estes imigrantes na habitação. Quando virmos nas notícias que são estes os perseguidos e os penalizados e deixarmos de ver expressões hediondas como “caça a ilegais” a ocupar todos os dias o espaço mediático estaremos no caminho certo.

(Editorial do BI do ACIME / Abril 2006)

14 março 2006

Planeamento urbano e integração de imigrantes

Somos - também - o espaço que habitamos. Inevitavelmente, para o bem e para o mal, o contexto espacial influencia comportamentos e atitudes, expectativas e dinâmicas sociais. Não é nada indiferente à geração e/ou reforço da exclusão ou inclusão social, a conceptualização e execução de modelos urbanísticos, quer na sua dimensão de espaços privados, quer no domínio do espaço público. A qualidade deste, em contextos urbanos, é mesmo um factor determinante da qualidade de vida das populações que o utiliza e condicionante das suas trajectórias na comunidade.

Tradicionalmente, as faixas de população mais pobre não têm ao seu alcance, no domínio da habitação, opções de qualidade. Os espaços ao seu dispor são desprovidos e tristes, massificados e “industriais”, reforçando um circuito de exclusão que não termina. Nesses contextos sujeitos a forte pressão de exclusão social, nos quais há uma sobre-representação de imigrantes e minorias étnicas, também os poderes públicos parecem, por vezes, considerar suficiente suprir carências básicas de habitação. Nasceram, assim, projectos urbanísticos centrados quase exclusivamente na habitação para o maior número, ao menor custo. Sendo em si mesmo positivo – muitos desses beneficiários provinham de situações de habitabilidade indignas - não chega proporcionar-lhes um tecto.

Efectivamente falar de integração de imigrantes é também falar de política de Cidades, entendidas de per se ou enquanto sistema. A evidente necessidade de um maior cerzimento urbanístico - tornando o espaço urbano contínuo e não apenas contíguo - implica repensar globalmente a forma como olhamos a cidade, perspectivando-a como um todo e não enquanto um espaço fragmentado, procurando salvaguar o maior número possível de contactos com o restante espaço urbano em que estes territórios se inserem. Neste sentido, a evidência da relação entre a exclusão e a segregação sócio-espacial deve reforçar a necessidade de que as políticas de combate a esses fenómenos sejam o mais territorializadas e localizadas possível.

Mais do que para qualquer outra faixa de população, o investimento no planeamento urbano cuidado, a aposta em infra-estruturas sociais e culturais de apoio e a opção pela elevada qualidade estética dos espaços são ferramentas essenciais para um processo de combate à exclusão das populações mais pobres, entre as quais as comunidades imigrantes. O investimento no ordenamento do território, no planeamento urbano e na qualificação dos espaços no âmbito da integração social e económica destas comunidades é pois absolutamente estratégico, no quadro de coesão social.

A nossa história recente tem registado evoluções significativas no domínio do planeamento urbano. Com um passado com muitos erros e imperfeições, as soluções urbanísticas têm sido reinventadas em função de uma melhor integração das populações a que se destinam. Procuram-se hoje evitar erros que outros cometeram e aprender com exemplos de boas-práticas nacionais e estrangeiras. Numa perspectiva de aproximar as soluções aos seus principais destinatários, parece cada vez mais relevante criar instrumentos de participação dos imigrantes (bottom-up) no processo de planeamento urbano, algo que alguns exemplos têm vindo a demonstrar fazer a diferença. Mas precisamos de continuar a procurar caminhos inovadores.

08 março 2006

Mulher migrante: dupla desvantagem?

Hoje comemora-se mais um Dia Internacional da Mulher. É uma boa oportunidade para reflectir sobre a experiência de mulher migrante.

O número de mulheres migrantes, em todo o Mundo, ascende a 90 milhões, o que corresponde a quase metade da totalidade dos migrantes (49%)[1]. A sua percentagem é particularmente elevada em países/regiões de acolhimento como a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

Naturalmente, no curso da reflexão sobre Imigração, foi sendo atribuída crescente atenção aos temas relacionados com Género. Este cuidado decorre não só do crescimento do número de mulheres migrantes – presença essa que aumentou no total de migrantes de 46,6%, em 1960, para 49%, em 2000 - e da especificidade dos fluxos migratórios femininos, mas também da verificação de efectiva discriminação acrescida.

1. Desvantagens da mulher migrante

Verifica-se que as mulheres migrantes sofrem no quadro migratório uma dupla desvantagem comparativa - por um lado, a desvantagem de ser mulher em relação ao homem e, por outro, de ser migrante em vez de autóctone - e que tem um efeito muito marcado. Essa desigualdade é igualmente reforçada a montante. pelo contexto do país de origem que, sendo habitualmente países em vias de desenvolvimento, tem - por regra - ainda muito marcada a diferença de género, com limitações no acesso das mulheres a níveis de instrução e de formação profissional mais diferenciados.

Assim, no que toca, por exemplo, ao acesso a emprego no país de destino, a discriminação clássica no género, multiplica por dois (mulher*migrante). Essa realidade reflecte-se, por exemplo, na taxa de desemprego que é, proporcionalmente, mais alta nas mulheres migrantes dos que nos homens migrantes, bem como igualmente mais alta nas mulheres migrantes que nas mulheres autóctones. Por outro lado, as oportunidades de emprego estão limitadas a segmentos poucos considerados e mal pagos, como o trabalho doméstico, as limpezas e a restauração, com elevado risco de cristalização e reduzida mobilidade ascendente, em termos profissionais. Acresce que estes sectores de actividade são marcados por elevada taxa de informalidade, o que diminui o nível de protecção social que estas mulheres beneficiam.


2. Mutações do processo migratório feminino

Mas regressemos à génese do processo migratório. A probabilidade migratória das mulheres depende de um conjuntos de factores a considerar[2]:
- Individuais: idade, nº de ordem na família, raça/etnia, origem rural/urbana, estado civil, existência de filhos, papel na família (esposa, filha, irmã ) posição na família (subordinada ou com autoridade), habilitações literárias, competências profissionais e classe social;
- Familiares: dimensão e composição da família, fase do ciclo de vida, estrutura familiar,..
- Societais: normas comunitárias e valores culturais que determinam se a mulher pode imigrar e, em podendo, como e com quem.

Na configuração tradicional, até há três décadas, quem partia inicialmente para o estrangeiro era o homem. Embora fosse secundarizado, o papel da mulher era muito relevante desde o início, pois a formulação de decisão migratória de um membro da família resultava, quase sempre, de um processo partilhado e vivido em comum. Depois, na etapa da concretização da partida do marido, o impacto da migração na família determinava alterações significativas para o papel da mulher, com acrescidas responsabilidades na gestão doméstica e na educação dos filhos, dada a ausência do marido emigrante. A sua heroicidade muitas vezes anónima não é menor que a do protagonista masculino – o emigrante - tido sempre como o único herói visível deste processo.

Quando mais tarde partia para se juntar ao marido, e independentemente do momento no ciclo migratório, o seu papel específico era muito significativo para o sucesso da integração da sua família. Sublinha-se, nesse quadro, o seu contributo, através do trabalho remunerado, para um aumento proporcional do rendimento familiar, a que acresce uma maior facilidade na constituição de redes sociais de proximidade, muito importante para a boa integração da família imigrante na sociedade de acolhimento.

No entanto, esta configuração tradicional do papel da mulher nos movimentos migratórios, visto como dependente do homem, está em grande mutação. Muitas mulheres decidem agora partir sozinhas, e através desta decisão de emigrar, conseguem, em determinados contextos, conquistar papéis mais activos e com maior grau de liberdade e autodeterminação.

Esse facto, não é de somenos importância no quadro de sociedades onde a mulher está confinada a um estatuto menor e dependente. Nesse contexto, a migração destas mulheres pode representar uma janela de oportunidade de autonomia, desde que não se deixem enredar pela reprodução no país de destino dos mesmos laços sociais que a condicionavam no país de origem e que consigam vencer as desvantagens competitivas já referidas. Para além disso, por via da rede de contactos que poderá manter com o país de origem, o seu exemplo, quando bem sucedido, pode representar um factor indutor de mudanças na sua sociedade de origem, colocando em questão as injustiças no tratamento desigual das mulheres.

No caso da migração de mulheres fora do contexto clássico do reagrupamento familiar, surge com maior probabilidade a formação de famílias interculturais, através do casamento com um membro exterior à comunidade de origem. Estes casamentos mistos representam um importante mecanismo de miscigenação da comunidade humana e encerra a esperança de uma maior harmonização das diferenças. Em Portugal, no ano de 2002, dos casamentos realizados 4,8% foram entre um(a) cidadão(ã) português(sa) e um(a) cidadão(ã) estrangeiro(a), o que representou uma duplicação face a 1999 (2,3%) , crescendo em linha com o aumento do número de estrangeiros no nosso país.

No entanto, algumas vezes, o casamento misto surge também como um expediente de integração e de aquisição de situação legal mais estável, por exemplo, através da possibilidade de naturalização. A lei e as instituições de qualquer sociedade de acolhimento devem procurar combater estas formas de perversão e de abuso da instituição do casamento, mas devem fazê-lo somando à eficácia desse combate, um sentido de equilíbrio e de recusa da desconfiança sistemática à priori perante qualquer casamento misto.


3. Direitos fundamentais e choque civilizacional

Coloca-se neste domínio associado ao género, uma das mais evidentes áreas de choque civilizacional entre comunidades de acolhimento e comunidades migrantes. Assim, na esfera do estatuto e do papel da mulher, na sociedade e na família, são visíveis tensões relevantes com algumas culturas. Questões como a desigualdade e subjugação ao homem (pai ou marido) ou de tradições como a mutilação genital feminina, colocam dificuldades e desencontros importantes. Perante estes traços comportamentais de algumas comunidades migrantes, há que identificar e distinguir os que são claramente contraditórios com a lei e os princípios constitucionais das sociedades de acolhimento e os que não o são, ainda que constituam costumes e tradições diferentes.

Para aqueles comportamentos/atitudes ilegais e anti-constitucionais, o princípio do respeito pela especificidade cultural dessas comunidades deve ser secundarizado perante valores associados aos direitos humanos. A defesa da dignidade da mulher, ainda que possa ter matizes culturalmente condicionadas, tem um padrão comum que não pode ser colocado em causa, sob pena de se fracturarem valores básicos da sociedade de acolhimento. No entanto, essa abordagem deve ser feita num contexto de diálogo firme mas construtivo e não através de uma imposição cega da lei. Deve igualmente ser condicionada por uma rigorosa e objectiva avaliação da legalidade, ou não, de uma determinada prática, expurgando eventuais preconceitos não fundamentados, com base no desconhecimento ou estranheza cultural.

Por outro lado, a sociedade de acolhimento, em coerência com o princípio legal da protecção da dignidade da mulher deve, em circunstâncias em que esta pode ser colocada em causa, oferecer mecanismos de protecção suficiente, para que a mulher migrante em risco possa deles beneficiar. Sabendo que a recusa da mulher migrante em aceitar tradições da sua comunidade pode condicionar o rompimento, afastamento e vulnerabilização subsequente, a sociedade de acolhimento não pode ser hipócrita, limitando-se à afirmação do princípio legal da protecção da mulher. A viabilização de título de residência estável, independente dos mecanismos de reagrupamento familiar, a protecção jurídica adequada, o apoio de centros de acolhimento temporário se necessário, são algumas das respostas necessárias.


4. A migração forçada e o tráfico de mulheres para exploração sexual

Nos últimos anos, tem vindo a crescer a preocupação com a dimensão das redes de migração forçada e tráfico de mulheres para actividades conexas com os negócios do sexo. Essa realidade atinge números que envolvem, só na União Europeia, a entrada anual de cerca de 120.000 mulheres vítimas de tráfico[3]. Este é um negócio particularmente rentável, sendo somente ultrapassado em rendimento, no universo do negócios ilegais, pelo tráfico de droga, embora este seja muito mais perigoso para as redes envolvidas. Por isso, as redes clandestinas têm vindo a “investir” cada vez mais nesta fonte de receitas.

Note-se que neste âmbito específico – tráfico - consideram-se exclusivamente mulheres que foram envolvidas em redes organizadas de exploração sexual, agindo fora do seu país de origem, nas quais se vêem obrigadas a permanecer, sofrendo várias expressões de violência física e psicológica em circuitos de negócios de sexo. De uma forma mais rigorosa, considera-se tráfico “...o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou a recolha de pessoas, pela ameaça de recursos, à força ou a outras formas de coacção, por rapto, por fraude, e engano, abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade, ou através da oferta ou aceitação de pagamentos, ou de vantagens para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre uma outra para fins de exploração[4]


A questão do tráfico de mulheres para exploração sexual é um problema complexo que, no entanto, exige a partida uma clarificação de princípios. É inaceitável, em qualquer circunstância, o tráfico de pessoas, mesmo quando se argumenta que se trata eventualmente de uma opção livremente exercida pela mulher envolvida. De novo, a dignidade da Pessoa, não permite contemporizações com este fenómeno. Deve, por isso, ser combatido todo o sistema de exploração que viabiliza este circuito, ao mesmo tempo que se deve proteger e recuperar as mulheres vítimas de tráfico.

O tráfico tem condições favoráveis, desde logo, pela pobreza nos países de origem que atinge particularmente as mulheres e na escassez de horizontes que essa pobreza origina. Isso torna possível que muitas mulheres fragilizadas e vulneráveis se deixem enganar - por outros, ou mesmo por si próprias - perante oportunidades que lhes surgem e parecem ser a solução dos seus problemas. Ilusões quanto à proposta de “trabalho” (bailarinas, empregadas de mesa, modelos,....) não antecipam o pesadelo que irão viver e a pressão para sair do país de origem a qualquer custo não estimula a prudência necessária. Mesmo aquelas que têm consciência que irão desenvolver actividades de prostituição, não imaginam a situação que irão enfrentar, nomeadamente de sequestro.

Uma vez chegadas às malhas das redes, a verdadeira face da exploração desvenda-se, quase sempre com a confiscação dos documentos – o que as torna de imediato indocumentadas face à lei – e com o exercício violento das exigências próprias desse circuito. O controle absoluto de movimentos e o sequestro, a violência física, a obrigatoriedade de prática continuada da prostituição e a sua transição entre diferentes casas de exploração são algumas das evidências mais frequentes. E o que começou com uma imprudência ou um engano, acaba numa exploração degradante.

Neste processo, as mulheres traficadas acabam por ser o alvo preferencial e a sua penalização social e legal é incomparavelmente maior que a dos verdadeiros criminosos que as traficam e as exploram, bem como a dos seus “clientes” que abusando da sua situação de vulnerabilidade, são cúmplices nesse circuito diabólico. O pensamento dominante das sociedades de acolhimento culpabiliza-as quase sempre, atribuindo a circunstância em que se encontram ao exercício da sua vontade. Como noutras questões de exclusão social – como a toxicodependência, por exemplo - a interpretação que é feita do exercício da liberdade individual é descontextualizada. As “prisões” que determinados sistemas impõem são feitas de grades aparentemente invisíveis aos olhos dos comuns que não as vivem.

Sabendo existirem várias perspectivas possíveis na abordagem desta drama, umas mais focadas na questão policial ou migratória, outras sobretudo na questão dos direitos humanos, importa ter uma perspectiva integrada e transversal que inclua medidas preventivas, legislação penal, boa articulação e cooperação entre as polícias e tribunais, bem como mecanismos de protecção, assistência e apoio às vitimas. Este último vector deve consistir na primeira prioridade, em função do qual todos os outros se desenham.

As consequências dos traumas psíquicos e físicos que estas vítimas sofreram durante o período de exploração são grandes e exigem um cuidado multidisciplinar e gerador de segurança e protecção. Assume particular importância a possibilidade de ser concedido um estatuto legal de protecção de média-longa duração que possibilite a recuperação e reinserção social no próprio país de acolhimento, quando se evidencia ser essa a vontade da mulher. O papel das ONG no processo de assistência e apoio ás vítimas de tráfico é insubstituível e, não dispensando o papel dos Estados, pode em muito acrescentar na resposta solidária a estas vítimas.

As Nações Unidas, a Organização Internacional para as Migrações e a União Europeia têm dado particular atenção a este tema, mas muito resta por fazer.


5. Recomendações e pistas futuras

É evidente que a reflexão e acção futuras no domínio das políticas de imigração devem continuar a consolidar a atenção crescente que tem sido dada ás questões de género.

As Nações Unidas, no relatório já referido, tendo em vista a melhor integração das mulheres migrantes, recomendam, entre outras medidas:
• Capacitação das mulheres, para que participem nas decisões que as afectam a si próprias e às suas famílias;
• Protecção dos direitos e da segurança das mulheres migrantes, das refugiadas e das que são objecto de tráfico, nomeadamente através de legislação e de convenções internacionais mas também, o que é ainda mais importante, graças a programas que as ajudem a afirmar os seus direitos;
• Aumentar as oportunidades de emprego e o acesso à educação, à formação, à habitação segura e a preços acessíveis, aos cuidados de saúde e a outros serviços; e
• Mais dados, sobretudo dados desagregados, sobre as mulheres e a migração, acompanhados de um estudo quanto às suas causas e efeitos, a fim de permitir criar uma base em que possa assentar a formulação de políticas e programas.

Nesta mesma direcção importa reforçar o envolvimento das mulheres migrantes em movimentos associativos com participação também de mulheres autóctones, bem como estimular e reforçar o empenho da sociedade civil do país de acolhimento para estas problemáticas específicas.


(in "Uma mesa com lugar para todos")

[1] World Survey on the Role of Women in Development: Women and International Migration (Março de 2005); 9
[2] cf. estrutura apresentada em Boyd, Monica; Grieco, Elizabeth (2003) Women and Migration: Incorporating Gender into International Migration Theory , University of Toronto, Migration Policy Institute.
[3] Cf. informação disponível em “Tráfico de mulheres. A miséria por trás da fantasia: da pobreza à escravatura sexual – Uma estratégia europeia global”. Em http://europa.eu.int/comm/justice_home/news/8mars_pt.htm
[4] termos do Protocolo de Palermo, art. 2º, alínea a).

06 março 2006

Colisão - Simplesmente extraordinário



Poucas vezes o cinema nos terá oferecido, por um lado, um tão extraordinário exercício de interpretação da realidade complexa que vivemos nos contextos multiculturais dos nossos dias e, por outro, uma tão cristalina visão da natureza humana.

COLISÃO, independentemente do veridicto dos Óscares, é - arrisco - uma obra prima, desde logo, pelo seu argumento original. Ao contrário de incursões muito maniqueistas, que abundam em filmes que cruzam as temáticas do racismo e da exclusão social, onde o bem e mal estão em continentes bem separados, esta história vai mais longe e chega ao ponto certo. Como o dissendente russo Alexander Soljenítsin, os autores do argumento (Paul Haggis e Bobby Moresco) parecem ter o mesmo ponto de partida: "Que bom seria que os homens se dividissem entre bons e maus... Encerraríamos os maus e restariam os bons. O problema é que a linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada homem: e quem de nós está disposto a abdicar de metade do seu coração?"

Toda a história de COLISÃO é, acima de tudo, um rendilhado de vidas que se cruzam, revelando em diferentes momentos, as faces - mais ou menos ocultas - de cada personagem. As tensões dos encontros e desencontros com o "outro", os preconceitos que nos habitam nos contextos mais inesperados (You think you know who you are. You have no idea.), a redenção que nunca é impossível e a perfeição que nunca chega a ser eterna, são alguns dos veios que o filme desenrola. Esta leitura que nos propõe (num clima estético sofisticado, onde a música é peça fundamental) embora seja lançada em torno da ideia do toque e do choque, da distância e da diferença, é simplesmente sobre a nossa humanidade. Com ele, descobrimo-nos.

E se para todos COLISÃO deveria ser de visionamento obrigatório, para quem trabalha em contextos multiculturais, com a temática da imigração e do racismo, é um referencial indispensável. Seis nomeações para os Óscares pode, muitas vezes, não querer dizer muito. Neste caso, só peca por defeito.


"It's the sense of touch. In any real city, you walk, you know? You brush past people, people bump into you. In L.A., nobody touches you. We're always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much, that we crash into each other, just so we can feel something."

Disponível em DVD.

Indispensável ler o artigo "Um filme muito inteligente" de Maria José Nogueira Pinto, no Diário de Notícias, de 30 de Março.

"Crash é a história da contradição presente na condição humana, entre o bem e o mal, nunca linear, sem categorias homogéneas: humilhação e exaltação, morte e vida, dignidade e indignidade, condenação e perdão, tirar e dar. E por isso é também, como não podia deixar de ser, uma história de redenção."