18 abril 2007

Acolher e integrar através da Escola

Portugal tem vindo a tornar-se progressivamente num país de acolhimento de imigrantes. E com eles, vão chegando à nossa sociedade os seus descendentes, através do reagrupamento familiar ou do natural desenvolvimento das famílias. Este novo panorama multicultural na sociedade portuguesa e, particularmente no nosso sistema educativo, representa um enorme desafio para todos os protagonistas, para o qual somos todos convocados.

Para lhe dar a justa resposta será bom que comecemos por ter consciência de algumas vulnerabilidades específicas que estas crianças e jovens experimentam.

O primeiro desafio que importa sublinhar é o conflito identitário. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão difícil de resolver que é ainda agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social, em relação à sociedade de acolhimento, seja em recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de sub-culturas importadas.

Neste processo de crise é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas essa exclusão desde o berço não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que algumas encontram, por vezes agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular. Ao mesmo tempo, a expressão dessa identidade rebelde é factor de reconhecimento inter-pares, dentro do grupo de referência, e de remuneração afectiva que estimula uma auto-estima quase sempre inexistente. Estranhamente - para o mainstream - esse mecanismo do “quanto pior melhor”, de violência sem móbil e de espiral em direcção a um abismo constitui-se, com uma lógica muito própria, como auto-justificação suficiente. Perante ela, saibamos reconhecer onde está a sua origem e não nos deixemos impressionar só pelo seu efeito.

Ao invés, uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música tem sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro, a política ou a cultura fossem também espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.

Se a questão do conflito identitário é específico das crianças e jovens descendentes de imigrantes, a exclusão social não o é, pois toca a crianças e jovens autóctones com igual severidade. Só que em relação às crianças e jovens descendentes de imigrantes é mais uma parcela a somar na conta das desvantagens comparativas.

Fruto da pobreza e de uma vida particularmente difícil, estas famílias lutam em condições profundamente adversas, entre emprego precário, salário baixo e incerto e horário de trabalho alargado por um futuro que muitas vezes lhe foge, apesar desse sacrifício. A pobreza gera, assim, exclusão social e esta pode atingir níveis trágicos de profunda ofensa à dignidade humana. Por exemplo, o simples facto de os pais começarem a trabalhar muito cedo e não existir nos seus bairros de residência suficiente rede de apoio pré-escolar, faz com que muitas destas crianças fiquem sozinhas, “fechadas na rua”, desde idades mínimas, não sendo improvável encontrar em alguns destes bairros crianças de três e quatro anos sozinhas na rua, durante todo o dia. Este facto só pode ter um resultado devastador.

Um outro nível a ter em consideração é a sensibilidade extraordinária destas famílias às crises sociais e económicas. São elas que estão na primeira linha dos que são atingidos pelo desemprego ou pelos salários em atraso quando chegam os tempos difíceis. As alternativas rareiam e as consequências são muito funestas: destabilização familiar, incentivo ao abandono escolar, comportamentos desviantes,..

Por outro lado, os espaços residenciais ao alcance destas famílias são os mais desqualificados, com habitações precárias, espaços verdes e de lazer inexistentes, equipamentos sociais incipientes, maus acessos e transportes deficientes. Muitas vezes guetizados, estes espaços sub-urbanos constituem a paisagem à nascença para estas crianças. Apesar de progressivamente virem a desenvolver um paradoxal sentimento de protecção dentro do bairro, no qual se começam a encerrar, todo o contraste com o mundo circundante é muito marcado. As comparações são inevitáveis e as crianças têm muito maior dificuldade em aceitar como inevitáveis e “normais” as desigualdades no Mundo.

Uma outra expressão deste contraste e desta tensão verifica-se ao nível do consumo. Estas crianças e jovens são “bombardeadas” como todas as outras – aí não há diferença – com os múltiplos apelos ao consumo. Difere, no entanto, o poder de compra. O baixo nível de vida liberta poucos recursos para o consumo de bens não essenciais e estas crianças e jovens confrontam-se com a permanente frustração de não aceder a esses bens, que acumula com todo o restante passivo. É, nesse contexto, significativo que a pequena criminalidade infanto-juvenil que se gera nestes meios tem como móbil prioritário nos objectos a furtar, roupa de marca, telemóveis, sapatos de ténis de marca... remetendo sempre para esse imaginário de sociedade de consumo sempre imposta e nunca alcançada.

No seio destes ambientes de exclusão social, florescem redes de actividades ilegais mais pesadas, que sabem que aí se encontram condições favoráveis para aliciamento de jovens – e menos jovens - que estão à margem, sem horizonte, nem esperança. Espantosamente, a maioria consegue resistir e tem carácter e coragem para, contra todas as adversidades, não seguir esse caminho aparentemente mais fácil. Só que alguns não resistirão e serão recrutados para essas indústrias do mal.

Queremos sublinhar que não partilharmos de uma visão sistémica em que tudo depende do ambiente e dos sistemas em que o indivíduo se encontra inserido e, por isso, tudo lhe deve ser desculpado, desde que se prove esse contexto adverso. Há sempre uma capacidade de autodeterminação pessoal e resiliência que permite na maioria destas crianças e jovens extraordinários trajectos de vida. Mas não podemos ignorar que nós somos “nós e as nossas circunstâncias”.

No desfazer de equívocos, importa repetir que o que até agora se descreveu resulta da exclusão social por mecanismos socio-económicos que nada têm a ver com a origem nacional ou étnica das comunidades atingidas. Todos eles são válidos para crianças e jovens autóctones em igualdade de circunstâncias e verificam em diferentes cidades do nosso país.

Descrito um sumário diagnóstico de algumas desvantagens das crianças e jovens descendentes de imigrantes importa agora sublinhar o potencial que a Escola pode representar para contrariar estas vulnerabilidades.


A Escola inclusiva

A Escola pode cumprir um papel extraordinário na boa integração destas crianças e jovens e, através deles, das suas famílias. É uma das novas variantes da missão de tornar a Escola permanente e universalmente inclusiva.

Neste contexto, a configuração multicultural de muitas das nossas Escolas coloca assim um novo desafio para o qual o sistema educativo não está, em geral, devidamente preparado e que se acrescenta a outros que atingem globalmente este sistema. A gestão da diversidade, associada a uma quase sempre presente situação de exclusão social de muitas destas crianças provenientes de comunidades minoritárias, representa uma vivência partilhada por muitas escolas e seus professores, que se vêem forçados a novas estratégias e novas abordagens. Estigmatizadas muitas vezes como “Escolas-problema” a evitar, são também – muitas delas – extraordinários exemplos de respostas inovadoras. Assim, os docentes enfrentam o desafio de alargar a sua formação para a interculturalidade, devendo ser incentivados a que conheçam a especificidade sócio-cultural dos seus alunos, bem como para que estabeleçam estratégias pedagógicas adequadas a esta diversidade que inclua o reforço da relação estreita com o contexto familiar destes alunos. Convergindo com este esforço, é fundamental a criação e distribuição de materiais pedagógicos de suporte à educação intercultural e anti-racista.

É seguramente muito importante que se faça da diversidade uma oportunidade de aprendizagem ao ritmo de um mundo global, partilhando tradições e traços culturais, competências e saberes. Os projectos educativos devem saber integrar na dinâmica da sala de aula - e fora dela - essa diversidade presente nos seus alunos. Mas, ao mesmo tempo, devem cultivar a evidência do nosso património comum enquanto humanos, que em tudo nos aproxima apesar das diferenças. Na Escola deve ser possível aprender a diversidade na unidade.

Às crianças, filhas de imigrantes, deve ser viabilizado não só o acesso à educação, em igualdade de circunstâncias com as outras crianças, como devem ser desenvolvidas acções positivas que reduzam algumas desvantagens contextuais que estas crianças enfrentam. Uma delas, talvez a mais relevante, passa pelo reforço, desde os primeiros anos de vida, da aprendizagem da língua em que vai fazer o seu processo educativo. As dificuldades de aprendizagem e níveis de insucesso escolar evidenciados por algumas crianças imigrantes, radicam na sua dificuldade de entender e se expressar na língua do país de acolhimento. Mas se estas dificuldades forem vencidas, para além do sucesso escolar, estas crianças e jovens proporcionam a primeira e privilegiada ponte linguística da sua família com a sociedade maioritária. Muitas vezes, é com eles e através deles que os pais aprendem e comunicam.

Uma outra acção positiva a desenvolver, no caso de crianças que chegam ao país de acolhimento já em pleno processo de escolarização, passa por apoiar a criança no seu “choque cultural” com um novo sistema de ensino que pode ser substancialmente diferente do que conheceu no seu país de origem, bem como apoiá-la a ultrapassar a saudade e a quebra de laços afectivos. A sua integração nas dinâmicas escolares deve ser estimulada e acompanhada e a experiência de que é portadora deve ser valorizada junto dos colegas e representar ela própria um recurso para a educação intercultural e a formação para a diversidade.

A Escola não deveria aceitar, sem uma incansável luta, a perda de muitas destas crianças, por via do absentismo e do abandono escolar. Cada vez que isso acontece é toda a sociedade que é derrotada. A particular atenção, desde a chegada da criança à escola, à redução das suas desvantagens competitivas que começam na frágil rede de suporte familiar, na habitação que não dispõe de condições necessárias para que possa estudar quando chega a casa, na ausência de materiais de apoio escolar, ou ainda nas carências básicas na alimentação, deve motivar fortemente toda a comunidade escolar. Como em relação a crianças portuguesas em iguais circunstâncias sociais, a Escola deve ser capaz de dar uma resposta precoce a estas limitações, não esperando que surjam os sinais de desintegração e de insucesso. Ao investimento colocado em sala de aula deve somar-se outro pelo menos tão relevante em relação ao tempo extra-lectivo em que uma Escola inclusiva pode dar ainda muito a estas crianças. O estudo acompanhado, o apoio psicológico e social, o apoio em material de apoio pedagógico, nomeadamente através de empréstimos da biblioteca escolar, são alguns dos exemplos. O regime de tutoria que quer o director de turma, quer outros membros da comunidade escolar devem desenvolver junto destas crianças pode ser também um importante elo de ligação. Nesta missão, a Escola deve ser capaz de trabalhar em rede com outras instituições da comunidade – autarquias, associações, clubes desportivos,.. – de forma a potenciar uma acção integrada e extensiva que atinja elevada eficácia tendo em vista o combate à exclusão.

Para as crianças descendentes de imigrantes, a Escola deve ser também um tempo e um espaço onde se exercita a Educação para a cidadania, expressa entre outras formas, pelo apelo à sua plena participação cívica, política e social na sociedade de acolhimento, sem discriminação, nem anulação da sua identidade própria. È na escola que se começará a ganhar ou se perder um cidadão(ã) de pleno direito.

Para a boa inserção destas crianças nas Escolas, pode ser útil e adequada a existência de mediadores socio-culturais, provenientes da própria comunidade de origem ou da comunidade maioritária, que funcionem como facilitadores e interfaces que quebrem isolamentos ou desfaçam equívocos resultantes de desconhecimento mútuo entre estas crianças e o sistema. Com o cuidado necessário para que não representem um papel contraproducente, que acentue as diferenças e que perpetue conflitos, os mediadores podem - nomeadamente em relação ao momento da chegada destas crianças à Escola, bem como em situações de crise - exercer a sua função de mediação, com bons resultados.

Mas também importa reforçar a responsabilidade familiar. Os progenitores imigrantes são, normalmente, verdadeiros heróis em busca de um futuro melhor para os seus filhos. Procuram incessantemente dar-lhes uma vida diferente daquela que tiveram. Não regateiam sacrifícios, trabalhando horas sem fim, em condições normalmente muito adversas, para lhes poderem proporcionar esse destino diferente. Mas essa opção tem, algumas vezes, um preço elevado a pagar, que é, muitas vezes, a ausência da função educadora de pais. Tal como muitas outras famílias não-imigrantes preocupam-se com dar “coisas”, mais do que proporcionar Educação. Esta exige presença, diálogo e acompanhamento dos filhos onde os pais são insubstituíveis.

No domínio da construção da Escola intercultural, o Secretariado Entreculturas tem vindo, através de acções de formação, da edição de materiais pedagógicos, da realização e participação em seminários e congressos, ou da participação em projectos internacionais, a dar uma excelente resposta ao longo dos últimos anos. Este modelo, estabelece, nomeadamente, “um lugar significativo às diferentes tradições culturais e religiosas em todos os programas escolares, nos materiais pedagógicos, no calendário e na decoração escolares, bem como procede a autocrítica constante relativamente às práticas que conduzem determinadas categorias de alunos ao insucesso e a percursos menos valorizados” . Acresce ainda que valoriza a participação igualitária de todos os alunos e assume um papel contra o racismo.

Num outro modelo de intervenção, o Programa Escolhas , em funcionamento desde 2001, com um modelo renovado em 2004 e 2006, tem representado também um importante investimento do Estado português. Com 120 projectos no terreno, envolvendo 40.000 crianças e jovens, este Programa visa o desenvolvimento pessoal das crianças e dos jovens mais vulneráveis, com particular atenção para os descendentes de imigrantes em Portugal, tendo como fim a promoção da sua integração social na comunidade onde se inserem. Fá-lo através de iniciativas diversificadas (apoio escolar, apoio à inserção profissional, ocupação de tempos livres, inclusão digital, inclusão na sociedade de acolhimento) estruturadas a partir das necessidades sentidas pelas comunidades e pelos próprios jovens, com a lógica de projecto. Estas iniciativas visam a criação de reais oportunidades de inclusão no sistema educativo e de formação, a afirmação de um horizonte de futuro, o estimulo a um sentido de pertença e filiação social, uma cultura de auto-estima e o combate a todas as formas grosseiras ou subtis de exclusão.

De grande significado foi também a recente alteração da Lei da Nacionalidade. Em relação aos descendentes de imigrantes que nasceram em Portugal abrem-se múltiplas hipóteses de acesso à nacionalidade portuguesa: desde logo, por via originária automática, para os descendentes de 3ª geração; por via originária por efeito da vontade, para 2ª geração, com pelo menos um dos progenitores com cinco anos de residência legal no nosso país, independentemente do tipo de título que possuem. Mas as possibilidades para as crianças nascidas em Portugal não se esgotam nestas possibilidades. Por naturalização, abrem-se possibilidades de aceder à nacionalidade portuguesa a crianças que tenham nascido em Portugal e que completem o 1º ciclo do Básico, qualquer que seja o estatuto legal dos progenitores. Antes dessa fase ainda pode ser pedida a naturalização, se entretanto um dos progenitores completar cinco anos de residência legal.

Esta é, aliás, uma das alterações mais relevantes: a contagem dos cinco anos de residência legal de pelo menos um dos progenitores ser referenciado não ao momento do nascimento mas ao do pedido de naturalização.

Estes exemplos concretos, dentro e fora do sistema educativo, representam evidências de que é possível dar passos seguros para a inclusão social de crianças e jovens descendentes de imigrantes. É, no entanto, uma tarefa de todos, com particular responsabilidade para os protagonistas do sistema educativo. Aliás, muitos professores souberam dar ao longo dos últimos anos um exemplo notável, com escassos recursos e muita imaginação e dedicação para que as crianças descendentes de imigrantes fossem bem acolhidas nas nossas escolas. Há que continuar nessa linha, desde o jardim de infância até à idade adulta. A coesão social numa sociedade mais justa e com verdadeira igualdade de oportunidades, depende também desta aposta.

10 abril 2007

Novas portuguesas

Diversidade e Identidade Nacional na União Europeia:

O debate europeu sobre diversidade e identidade nacional está actualmente marcado por importantes tensões. Particularmente, sob fogo cerrado, tem estado o multiculturalismo que, de conceito em moda, se transformou em ideia proscrita.

Com efeito, especialmente depois dos atentados em Londres e dos assassinatos de Fortuyn e Van Gogh na Holanda, dizem as vozes autorizadas que o multiculturalismo faliu e que nada mais há a esperar de uma visão que considera a diversidade como estruturante e identitária. Alguns vão mesmo mais longe e também conseguem ver nos tumultos juvenis em França outra falência do multiculturalismo, ainda que tal modelo nunca tenha existido na sociedade francesa.

A crítica do multiculturalismo saltou assim para a agenda pública, como se nele residisse também a causa do novo terrorismo internacional ou das tensões étnico-culturais na Europa. Nessa crítica, destaca-se o argumento que as sociedades ocidentais são excessivamente tolerantes e permissivas na aceitação no seu seio da diferença cultural e religiosa, deixando até medrar radicalismos que lhe são hostis.

Importaria, segundo esta perspectiva, recuar nessa abertura e estabelecer outros referenciais mais fechados e, presume-se, mais uniformes em termos religiosos e culturais. Alguns acreditam ser desejável uma renovada hegemonia cultural ou religiosa, como movimento antagónico ao pluralismo dominante e, particularmente, às suas expressões mais perturbantes. Ainda que começando só pela afirmação da necessidade de um núcleo comum de valores, em torno dos quais se desenvolva uma coesão social, a sua ambição evidencia muito mais do que isso. Nasce assim um neo-assimilacionismo, revisto e aumentado.

Os discursos sobre os “valores ocidentais” que então emergem, bem como a recuperação da valorização da matriz grego-judaico-cristã da Europa, surgem, muitas vezes, não como expressões de uma convicção profunda nesse referencial mas como expedientes defensivos para barrar o caminho às ameaças percepcionadas. Esta tendência tem vindo a consolidar-se entre o “politicamente correcto” como se fosse inevitável e urgente. Ora tal leitura é precipitada e perigosa.

Ainda que se tente dissimular, o que perturba os europeus não é o multiculturalismo em si, mas as provocações que uma leitura minoritária, radical e pervertida do Islão – os salafistas jihadistas - tem colocado nos últimos anos. Centremos aí o início da questão. É importante perceber que não é a diversidade cultural que essencialmente está em causa, mas o radicalismo fora-da-lei.

Só que a forma inábil com que temos lidado com esta questão teve como efeito indesejado uma terrível espiral que está ainda em expansão. A partir de uma energia de activação – um atentado, um motim, uma declaração radical... - desencadeou-se um processo destrutivo da coesão social que assume consequências incomparavelmente maiores do que o impacto inicial.

O enquadramento escolhido, a generalização e essencialização dos protagonistas, o enviesamento provocado pelos critérios de noticiabilidade empurram-nos para o que queríamos evitar. Esse fenómeno gera efeitos colaterais de desconfiança e de estigmatização que são terríveis e provocam grandes estragos.

Com toda a ingenuidade do mundo, de certa forma, temos feito o jogo dos extremistas, dando-lhes de barato uma vitória que, pelos seus próprios meios, jamais estaria ao seu alcance. Com os nossos erros, ajudámo-los no seu ambicionado choque de civilizações. Este para vingar, entre outras condições, precisa de destruir a convicção de que é possível uma sociedade multicultural. E também aí arriscamo-nos a fazer o seu jogo.

O multiculturalismo faliu?

Assim, a contra-ciclo, importa questionar algumas certezas do momento, nomeadamente esta falência do multiculturalismo.

Comecemos por apontar alguns equívocos. De que falamos, quando nos referimos a “multicultural”? Olhamo-lo sobretudo como adjectivo de uma política ou como traço caracterizador de uma sociedade? Não é de somenos importância esta nuance.

As tecnologias de informação e comunicação, a mobilidade humana, os meios de comunicação planetários ou uma economia de redes e fluxos empurram-nos para uma estrutura social marcada pela diversidade, sempre presente em tudo e em todos. Acrescenta-se a esta equação, a consolidação, no mundo ocidental, do pluralismo como valor em si mesmo e da liberdade individual como afirmação constitutiva e estruturante das nossas sociedades.

A percepção de que estas transformações nos trouxeram, inexoravelmente, uma sociedade multicultural é fundamental, para que percebamos que não é sequer viável discutir se queremos, ou não, uma sociedade multicultural. “Sociedade” é hoje sinónimo de “multicultural”. É um facto incontornável. Não laboremos, portanto, num equívoco. Não se trata de uma opção que esteja ao alcance das nossas vontades.

Mas se olharmos para o multicultural enquanto política de gestão da diversidade cultural aí já estamos num domínio de uma opção entre várias, tipicamente arrumadas entre o assimilacionismo, o segregacionismo e o multiculturalismo.

Enquanto política também o multiculturalismo é vítima de equívocos. O principal é gerado, desde logo, por se tornar uniforme aquilo que é plural. Não há uma “política multicultural”, mas sim uma variedade de experiências, muito diferentes entre si, ainda que possam todas elas partilhar a mesma marca. Mas é evidente que o comunitarismo inglês é substancialmente diferente do multiculturalismo canadiano e este, por sua vez, tem pouco a ver com as experiências multiculturais holandesa ou sueca.

Destas confusões decorre que, muitas vezes, se define mal “multiculturalismo” e se lhe atribui injustificadamente características que não lhe são intrínsecas. O caso típico é a associação da política multicultural a uma expressão de relativismo absoluto, onde tudo é possível e igual. Ora, esta leitura é falaciosa.

Tomando a Austrália como exemplo, o modelo multicultural exige a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluindo a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional, igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem os seus valores. Por seu lado, no Canadá, entre os três objectivos essenciais do multiculturalismo está a unidade nacional (para além da igualdade e a participação social). Portanto, enganam-se aqueles que julgam ver no modelo multicultural genuíno, o expoente máximo do laxismo e a origem da falta de coesão social. Para lá da Lei, não há multiculturalismo.

Mas se quisermos encontrar elementos comuns nas definições de multiculturalismo descobriremos a aceitação e legitimação da especificidade cultural e social de minorias, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade, atribuindo ao Estado um papel muito importante na construção do modelo. Defende-se, neste contexto, a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da cultura étnica, especialmente língua e religião, a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.

Esta dimensão de igualdade de direitos e de deveres é fundamental, pois sem ela uma política multicultural pode ser perigosa. Bem como é essencial sublinhar que o combate às desigualdades socio-económicas que se sobrepõem à diversidade etnocultural deve ser estruturante das sociedades democráticas. A coincidência da exclusão socio-económica com o estatuto de minoria etnocultural pode ser fonte de inúmeros equívocos e rastilho de muitas explosões.

Numa outra dimensão, acresce ainda que cada um dos modelos nacionais de política multicultural é dinâmico e uma leitura desactualizada é fonte de novos equívocos.

Por exemplo, o modelo multicultural canadiano tem sofrido uma evolução onde se evidenciam três etapas : de uma fase inicial, nos anos 70, onde destacam a sua dimensão étnica, com a metáfora do mosaico cultural a guiar a sua construção, para uma etapa posterior, nos anos 80, onde o discurso se centra na equidade, concretamente na igualdade de oportunidades, usando como metáfora a "nivelação" até finalmente nos anos 90 se chegar ao multiculturalismo cívico, onde se sublinha sobre tudo o combate à exclusão social, por via da inclusão e se utiliza a metáfora da "pertença". Este foco na construção de uma sociedade inclusiva, onde se apela a uma cidadania plena de todos os cidadãos, sem que devam abdicar dos seus traços distintivos representa um forma muito distante do modelo criticado de fragmentação e de "ilhas sem pontes" que os adversários do multiculturalismo apontam.

Dito isto, importa assumir que as experiências de políticas multiculturais estão longe de ser perfeitas e têm um longo caminho de aperfeiçoamento a percorrer. Este exemplo das fases do multiculturalismo canadiano é bem ilustrativo desse desafio. Provavelmente, a incapacidade em alguns países europeus de fazer evoluir esta política, leva-nos a transformar o multiculturalismo, no dizer de Amartya Sen, numa “pluralidade de monoculturas separadas”. Ora aqui se define a questão nuclear e o factor crítico de sucesso do multicultural: o transformar-se em “Intercultural”. O passar da simples afirmação e reconhecimento da existência de um arquipélago de diferentes realidades culturais para o foco nas “pontes” e nas consequências daí decorrentes, nomeadamente a polinização cruzada e a miscigenação.


A defesa de um modelo intercultural na gestão da diversidade


Portugal tem afirmado a sua opção de gestão da diversidade cultural, nomeadamente no acolhimento e integração de imigrantes, através de um modelo intercultural, que deriva das políticas multiculturais e as aperfeiçoa.

O seu foco essencial é, numa sociedade multicultural, reforçar o sentido de pertença e a construção participada de uma comunidade de destino, partindo do respeito mútuo pela diversidade, considerada um valor em si mesmo.

Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades e indivíduos, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento e miscigenação cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. É uma dinâmica interactiva e relacional. Muito mais do que a simples aceitação do “outro” a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural propõe o acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro, decorrendo daí um novo “Nós”. Sempre plural, mas também coeso.

Nessa linha, em 2001, a UNESCO, através da sua Declaração Universal da Diversidade Cultural sublinhava que “em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.”.

Esta abordagem da interculturalidade aceita também o princípio da múltipla pertença/filiação, evitando situações em que alguém seja obrigado a optar por uma pertença contra outra. Como consequência prática, ao mesmo tempo que a consolidação da sua presença na sociedade de acolhimento corresponderá, em situações normais, a uma progressiva adaptação e identificação com ela, deve ser respeitada a ligação à sua cultura ancestral, que evite uma ruptura na sua vida.

Essa ligação pode evidenciar-se, num exercício individual, livre e autónomo, na oportunidade de ensino da língua e cultura materna aos seus filhos, a celebração da memória, em expressões culturais e artísticas ou ainda na manutenção do convívio, mais ou menos estruturado, com seus os conterrâneos radicados na mesma sociedade de acolhimento. Estas expressões devem ter uma janela de exposição para a sociedade de acolhimento, nomeadamente na arte e na cultura, que reforce a auto-estima dos seus protagonistas bem como consolide o conhecimento e o afecto que a sociedade de acolhimento deve nutrir pelas comunidades migrantes que nela se instalam.

Note-se, para que não restem dúvidas, que a política intercultural desenvolve-se sempre e só no quadro dos Direitos Humanos, da Democracia, do Estado de Direito com o primado da Lei. Do lado das obrigações, mas também dos direitos. Mas não admite que existam uns “mais iguais que outros”, nem assume a Lei como algo de cristalizado e imutável. É certo que não abdica que as transformações sociais, codificadas na Lei, devem ser democráticas e fruto da plena participação. Mas esta visão defende intransigentemente que todos devem participar nesta transformação, em igualdade de circunstâncias, e que evoluções são possíveis.

Nesse contexto, um aspecto crítico para o sucesso de uma politica intercultural que cultive o sentido de pertença é participação política dos imigrantes na sociedade de acolhimento. Portugal, como outros países, permite já a participação politica ao nível local, ainda que condicionada ao princípio da reciprocidade, o que viabiliza a participação de cerca de 50% dos imigrantes residentes. Ainda assim é necessário ir mais longe. Esta maior abertura está em discussão em Portugal, passando pela possibilidade da supressão do princípio da reciprocidade e, mais tarde, pelo alargamento da participação política a todos os níveis para os residentes de longa duração. Este caminho de alargamento da participação política é, na nossa perspectiva, fundamental para permitir aumentar o seu sentido de pertença, partilhando direitos e responsabilidades na construção de um futuro comum. Só através da plena participação política será possível canalizar adequadamente a representação dos interesses legítimos da população imigrante, através do sistema partidário existente, no quadro de uma democracia representativa. Por outro lado, só essa participação co-responsabiliza os eleitores de origem imigrante nas escolhas políticas feitas – também – por si.

A opção intercultural é, de todas as políticas de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua.

Neste contexto, o desafio que se coloca à redefinição da identidade nacional em Portugal é uma enorme oportunidade. Precisamos de nos rever e de saber reler a nossa identidade. Ao fazê-lo, no caso português, encontraremos seguramente uma identidade de fusão, com uma rede de estradas que se foram cruzando desde a sua origem até a actualidade, na imagem de Malouf. E se assim definida a nossa identidade nacional, nela encaixará perfeitamente a diversidade deste novo “Nós”. Seremos, por isso, um país cheio de sorte, reencontrados com a nossa identidade de sempre e capazes de construir uma comunidade de destino que seja intercultural, coesa e com futuro.

Nos 50 anos do Tratado de Roma

A Europa vive uma encruzilhada difícil nas suas políticas de imigração. O desconforto e a sensação de ameaça, a atitude defensiva e o fechamento vão marcando o sentimento sobre imigração de várias sociedades europeus. Condicionadas por um ambiente mediático que amplia todas as crises e as transforma na única verdade, como se imigração fosse sempre sinónimo de crise, os europeus parecem assustados.

Por mais difícil que seja, impõe-se uma resposta corajosa e com visão larga a este desafio fundamental, quer por parte dos Estados, quer da Sociedade civil. Os Europeus têm que saber encontrar na sua matriz civilizacional um caminho que transforme esta situação e que nos faça passar do medo à esperança. Que reforce uma sociedade inclusiva, humanista e com verdadeira igualdade de dignidade e de oportunidades. Esse é o grande desafio do momento actual.

Mas como responder a isto?

Não há, obviamente, uma só resposta, nem uma solução mágica. Mas há seguramente caminhos para ir dando passos, ainda que pequenos, na direcção certa.

Nesse caminho uma das primeiras armadilhas a evitar é a de tentar abordar uma questão complexa como a da imigração na Europa, através de uma análise fragmentada dos problemas, da hipertrofia artificial de algumas questões e de uma resposta política sectorial sem articulação.

Assim, a opção por uma abordagem integrada entre as temáticas migração, integração, inclusão social e anti-discriminação representa um dos maiores desafios das políticas públicas contemporâneas. A busca de coerência entre diferentes áreas e diversas perspectivas representa um caminho incontornável para quem procura eficácia nas políticas públicas de imigração.

Nesta reflexão, procuraremos então enunciar alguns desafios de coerência política no domínio das políticas de imigração.

Ao nível macro, o eixo essencial de procura de coerência passa pela visão articulada das questões das relações com os países de origem, da gestão de fluxos migratórios e da integração dos imigrantes. Quase sempre temos falhado este eixo de coerência. A sobre-valorização da questão da gestão dos fluxos migratórios e, sobretudo, a sua abordagem desintegrada, originou uma das maiores frustrações na política de imigração: a sensação de impotência no controle de fronteiras, perante a pressão externa. Acresce que a desvalorização das questões de integração, que durante muito tempo aconteceu, agravou ainda mais este desequilíbrio.

Concretizando um pouco mais: não é possível uma política de imigração coerente e equilibrada, se continuarmos a ter as políticas proteccionistas de comércio que temos prosseguido, fazendo empobrecer os nossos vizinhos ao lhes fecharmos o nosso mercado comum. Se não quisermos repartir a riqueza, será impossível parar quem procura sobreviver e a gestão dos fluxos migratórios será uma missão impossível.

Por outro lado, sabemos que a afirmação do co-desenvolvimento depende muito da existência de capital humano suficiente nos países em vias de desenvolvimento. Ora sistematicamente fazemos apelo à vinda de imigrantes altamente qualificados, desnatando estas sociedades dos seus principais recursos. Como poderá o co-desenvolvimento funcionar quando se desertificam os países de origem?

Mas também no pilar da integração de imigrantes se verificam incoerências significativas. Como podemos desejar uma integração bem sucedida, se a má gestão de fluxos migratórios produz essencialmente imigrantes em situação irregular, sem direitos, nem futuro? Como podemos ter uma boa integração se gastamos parte do nosso discurso e dos meios que temos a incentivar o retorno aos países de origem dos imigrantes legalmente estabelecidos na Europa, como se fossem indesejáveis aqui? Que sentido de pertença pode ter uma comunidade que se sente “convidada” a ir embora?

Estes são algumas das incoerências entre os três pilares essenciais na política de imigração: relações com os países de origem, gestão de fluxo migratórios e integração dos imigrantes.

Na busca de caminhos de coerência política entre estes três pilares é fundamental avançar, de uma forma corajosa, através de novas estratégias.

Para o aprofundamento da coerência política entre os três pilares, a redução de barreiras às importações vindas dos países vizinhos, o aumento da ajuda pública ao desenvolvimento e do investimento directo estrangeiro, nomeadamente na criação de empresas e respectivos postos de trabalho, são alguns caminhos possíveis. Neste último eixo, a participação crescente de imigrantes estabelecidos na Europa, como protagonistas alternativos è complementares às estruturas públicas dos seus países, é fundamental. Os imigrantes são já, através das suas remessas, o principal actor na ajuda ao seu pais de origem, mas poderiam ser ainda mais úteis. O papel das diásporas vai sendo cada vez mais conhecido e valorizado e pode representar um poderoso instrumento de desenvolvimento, ao qual a Europa se deve associar fortemente.

Por outro lado, a coerência política, ao nível da redução dos efeitos negativos da “drenagem de cérebros”, ganharia muito em apostar forte na efectiva migração circular, bem como no reconhecimento que não necessita só de imigrantes altamente qualificados, mas também imigrantes pouco qualificados.

Ao nível do pilar da gestão dos fluxos migratórios, sendo claro que todos defendemos a imigração legal, é fundamental fazer funcionar efectivamente os canais legais de imigração. Não podemos manter uma atitude defensiva e reactiva. Temos que ser capazes de ser pró-activos e tornar a imigração legal uma realidade fácil e ágil, orientada pelas necessidades concretas dos mercados de trabalho.

Finalmente, last but not least, o pilar da integração deve assumir um outro relevo. Muitas vezes, este tem sido o “parente pobre” das políticas de imigração, quer pelo baixo investimento que nele se faz, quer também pela sucessão de erros que se têm verificado. É urgente investir mais e melhor na integração dos imigrantes nos nossos países. A inspiração proporcionada pelos Princípios Básicos Comuns de Integração é muito positiva e pode ajudar a desenhar boas políticas de integração. Estas devem ser marcadas também por uma coerência interna, para além da coerência com os outros dois pilares da política de imigração.

Com efeito, a integração exige uma abordagem holística e global. Também neste domínio, visões parciais e fragmentadas são muito ineficazes. A todos níveis – local, nacional e europeu – é fundamental o envolvimento transversal e coordenado de várias instituições. A experiência concreta de Portugal, quer com o formato institucional do Alto Comissariado para a Imigração, colocado no centro do Governo, na Presidência do Conselho de Ministros quer também com o seu Plano para a Integração de Imigrantes recentemente aprovado, que envolve 123 medidas de 13 ministérios diferentes, mostra a nossa opção.

Uma última palavra sobre coerência.

Em tempo de crise do projecto europeu, vale a pena sermos coerentes com os últimos cinquenta anos da nossa História, porque neles encontraremos uma boa inspiração para o futuro.

Ao lado da ajuda ao desenvolvimento, a opção corajosa e ousada pela criação de um espaço comum , sem fronteiras, com liberdade de circulação de bens, de capitais e, sobretudo, de trabalhadores veio a revelar-se uma opção eficaz nomeadamente na gestão de fluxos migratórios internos. A perspectiva subjacente de solidariedade e de apoio ao desenvolvimento, bem como uma matriz nuclear comum em termos de valores essenciais (Democracia, Estado de Direito, respeito pelos Direitos Humanos, entre outros) viabilizou essa opção, que tem vindo a alargar-se significativamente. Desde o núcleo inicial de seis países fundadores aos actuais vinte e sete membros, muito caminho foi percorrido em cinco décadas com grande sucesso, independentemente da crise actual.

Portugal beneficiou, como outros, desse generoso espírito europeu. Com efeito, a ajuda ao desenvolvimento proporcionada pela solidariedade europeia expressa, por exemplo, nos fundos estruturais, permitiu que Portugal – bem como Espanha e Grécia, ou agora os países do alargamento - desse um notável salto no seu crescimento económico e nas suas condições de vida. Depois disso, pela primeira vez, no último século passou a ter um saldo migratório positivo, ou seja, ver reduzida significativamente a emigração e passar a ser país de acolhimento de imigrantes. O modelo está testado e funciona. É possível através da ajuda ao desenvolvimento criar um mundo mais justo e equilibrar os fluxos migratórios.

Apesar da crise europeia, temos esperança que este mesmo espírito possa vir a funcionar no alargamento a leste e poderá funcionar, se a Europa tiver para tal coragem e ousadia, em relação à Turquia e à margem sul do Mediterrâneo. Aliás, só dessa forma se evitará um cerco à Europa que, graças à tendência demográfica inversa (União Europeia a decrescer em termos de população e vizinhos a crescerem), terá inexoravelmente um resultado negativo para o “velho” – nunca o termo foi tão bem aplicado... – continente.

A experiência europeia, neste como noutros aspectos, deveria fazer-nos reflectir. Temos internamente no modelo europeu, um exemplo – o único – de uma gestão perfeita de fluxos migratórios, acompanhado da evidência que esta só pode acontecer num quadro de simultâneo apoio ao desenvolvimento dos países mais pobres e atitude social de solidariedade e de partilha de oportunidades. Não se trata portanto de uma pura utopia, sem qualquer fundamento real. Mesmo com todas as crises e dificuldades de percurso, a União Europeia, permitiu cinco décadas de paz e desenvolvimento partilhado, num continente que tinha como tradição a guerra e a destruição cíclica e um quadro de grande desigualdade entre desenvolvimento e riqueza de vários dos seus países.