09 maio 2006

Contra o jornalismo “encaixado*”

A segunda guerra do Iraque trouxe para a discussão sobre os media a nova tendência do “embedded journalism”. Acompanhando a invasão, “encaixados” entre as tropas americanas, alguns jornalistas reportaram então a guerra, a partir desse ponto de observação. Muitas foram as vozes críticas quanto à independência e ao rigor desta cobertura jornalística, pela sua proximidade excessiva a uma das partes e à sua estratégia de comunicação (ironicamente apelidado por alguns como in-bedded journalism).

A tendência desenvolveu-se, nomeadamente, através da sua extensão a operações das forças de segurança e de inspecção. Em Portugal, as recentes coberturas mediáticas da acção policial no Bairro da Torre, em Camarate, ou das sucessivas presenças de jornalistas em acções de inspecção alimentar e económica, são os exemplos mais actuais desta tendência.

Este tendência é perversa, quer para o Estado, quer para os media.

Ao incluir jornalistas nas suas operações, ainda que com o objectivo bem intencionado de dar a conhecer à comunidade as capacidades de acção das polícias ou das autoridades inspectivas para gerar confiança e simpatia, ficam criadas todas as condições para um enviesamento da acção a desenvolver, que passa a ter na presença de jornalistas um elemento essencial de condicionamento. Mais adiante, já em plena acção, a presença de jornalistas causa nos agentes uma pressão adicional para obtenção de resultados: há que corresponder à expectativa o que pode levar a um excesso de zelo, motivado não pelo cumprimento da lei, mas pela correspondência ao objectivo mediático da missão.

Mais relevante ainda, a perspectiva dos interesses do Estado, é que a cobertura, em tempo real, de acções policiais ou de inspecção por jornalistas, conduz a uma “espectacularização” destas operações, com a sua transformação inaceitável em reality shows, não compatível com a dignidade das funções do Estado. Por outro lado, a tentação dos agentes do Estado em configurar as suas acções de investigação e segurança em função do seu agendamento mediático, representa um entorse à sua missão e uma potencial infidelidade à justiça, que não se deveria mover por esse critério mediático.

Na perspectiva dos media, se é certo que estas operações contêm todos os ingredientes para elevada noticiabilidade, gerando por certo audiências significativas, - razão pela qual são tão atractivas – a participação nelas tem o seu preço. Por exemplo, do lado da fonte, convidam-se jornalistas para operações com uma razoável expectativa de sucesso, seguramente acima da média. Ninguém convida jornalistas para operações com risco de insucesso. É o primeiro enviesamento. Por outro lado, todas estas coberturas têm regras pré-estabelecidas (censura pré-aceite?) pela fonte oficial que o jornalista é obrigado a aceitar, enquanto regra do jogo. Finalmente, a reportagem neste contexto está estreitamente ligada à fonte oficial, transmitindo instantaneamente a informação que esta quer divulgar; não há espaço para ouvir a outra parte, que, sendo objecto de uma acção policial ou inspectiva, é obrigatoriamente vista como “suspeita” e situada no “outro campo”. Quando o “outro campo” é um colectivo – um bairro, uma comunidade, uma etnia – a generalização deste rótulo tem um relevante efeito estigmatizador sobre todo o colectivo, ainda que os potenciais prevaricadores sejam uma ínfima minoria. O efeito é arrasador e mesmo a ausência de resultados policiais ou da inspecção não anula a suspeição entretanto difundida e ampliada pela presença dos jornalistas nestas operações.

Por isso, o jornalismo “encaixado” é, deontologicamente falando, perigoso. Perigoso para a independência e para o rigor. A sua recusa deveria ser a regra. Mas também as instituições públicas deveriam saber recusar esta via. Ainda que seja teoricamente positiva a intenção de reforçar a imagem das forças de segurança e de inspecção, a dignidade das funções do Estado não se compagina com o preço a pagar pela mediatização da sua acção.


* tradução possível de “embedded”

07 maio 2006

Inovação e respeito cultural




Enquanto em vários contextos, com grande destaque para França, se faz do combate ao véu islâmico uma causa de Estado, proibindo o seu uso fora do espaço privado, o ACNUR e a Nike desenvolveram um projecto inovador – Together for girls - onde, respeitando a cultura e a tradição islâmicas, se criou uma linha de equipamentos desportivos adaptados a esse referencial. Recusando partir de uma posição de superioridade cultural e de crítica apriorística, uma equipa da Nike partiu para esta missão no Quénia, nos campos de refugiados de Dadaab, onde se encontram muitas mulheres somalis, que usam como vestuário uns largos véus. Procurando conhecer e compreender as tradições e tendo também as condições atmosféricas, a equipa criativa da Nike desenvolveu equipamento desportivo que permite, sem rupturas culturais, que as jovens deste campo de refugiados joguem voleibol. O que não deveria constituir surpresa é, infelizmente, uma novidade. Fica, no entanto, provado que há uma via possível para a construção de soluções e para novos passos a dar no diálogo intercultural. Desde que cada parte deixe de lado a intolerância...

02 maio 2006

Europe and its immigrants in the 21st century: a new deal or a continuing dialogue of the deaf?



Numa edição conjunta da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e do Migration Policy Institute, de Washington, acaba de ser editado, sob a coordenação de Demetrios Papademetriou, uma colectânea de textos muito actuais com o título Europe and its immigrants in the 21st century: a new deal or a continuing dialogue of the deaf?
Trata-se de onze peças importantes para entender os desafios que se colocam à Europa no domínio da gestão das migrações, adoptando dois eixos essenciais de análise: a integração e a migração económica e laboral.

Destaca-se ainda antes desses dois grandes capítulos, uma Introdução de Papademetriou, escrita a pensar nos decisores políticos que, duma forma sintética, organiza as principais questões que se colocam na gestão das migrações, na perspectiva dos países de acolhimento.

Na esfera da integração, Sarah Spencer enuncia os grandes desafios para a Europa e Rinus Penninx procura reter as lições aprendidas nas diferentes experiências de integração. Sublinhando a importância da cidadania nesta dinâmica, Alexander Aleinikoff propõe-nos a sua perspectiva, enquanto Jorge Gaspar e M. Lucinda Fonseca (é de saudar a presença de autores portugueses nesta colectânea) avançam com propostas para a construção de uma política urbana na nova era das migrações. Destacando uma das vantagens da parceria FLAD/MPI, Maia Jachimowicz e Kevin O´Neil fazem a ponte com a experiência norte-americana de integração de imigrantes.

Na segunda metade da obra, em que o foco repousa sobre as questões das migrações económicas, tem particular destaque um artigo de D. Papademetriou e K. O´Neil onde se faz uma resenha muito útil sobre os diferentes modelos de selecção de imigrantes, destacando os respectivos pontos fortes e fracos. A sua leitura é absolutamente essencial. Ainda neste eixo são abordados temas como a contribuição da imigração para a demografia europeia (W. Lutz e S. Scherbov) o novo papel dos imigrantes nas economias rurais do sul da Europa (C. Kasimis), bem como a provocativa interrogação sobre se “a imigração é inimiga do welfare state? (G. Brochmann).

Recomendado. Para aquisição informe-se junto da FLAD (fladport@flad.pt)