18 dezembro 2005

O modelo canadiano de acolhimento de imigrantes

O Canadá recebeu em cada um dos últimos anos, cerca de 250.000 imigrantes legais (tem 30 milhões de habitantes) e não pretende abrandar a entrada de novos imigrantes. Consegue níveis de integração notáveis que contribuem para uma economia cada vez mais pujante e é, por isso, um fenómeno mundial com o qual vale a pena aprender. Com efeito, entre muitos aspectos que se poderiam sublinhar, o sinal distintivo do Canadá parece resultar da conjugação entre um sistema de admissão que visa recrutar elevado capital humano, num modelo de “pontos”, com uma fortíssima rede de acolhimento à chegada, na qual é evidente o grande investimento na aprendizagem da língua, no acesso a uma habitação, no acolhimento na comunidade e no modelo de filiação à sociedade de acolhimento proposto.

Creio que este último aspecto constitui um dos segredos fundamentais do sucesso canadiano. Se por um lado, é francamente estimulado o acesso à plena cidadania (por ano, 150.000 imigrantes adquirem a cidadania canadiana), por outro é admitida a manutenção do vinculo cultural ao país de origem, fomentando uma dupla pertença, mesmo ao nível formal da dupla nacionalidade. O mérito do modelo multicultural canadiano resulta, pois, desta atitude inclusiva de integração: por exemplo, bastam três anos de residência legal no Canadá para aceder à cidadania. E não julguemos que por ser aparentemente fácil se trata de uma trivialidade. Pelo contrário, a cerimónia de atribuição de cidadania canadiana é verdadeiramente solene, celebrando-se anualmente a Semana da Cidadania, com grande destaque comunitário.
Portugal tem, neste domínio, muito a aprender com o Canadá.

Integração cultural e linguística

Na dinâmica de integração, importa também sublinhar a importância da integração cultural e linguística. Dominar suficientemente a língua do país de acolhimento é condição sine qua non para uma integração com sucesso. Sem este domínio, as desvantagens competitivas agravam-se exponencialmente e o imigrante recém-chegado atinge a vulnerabilidade máxima. Por isso, proporcionar aos imigrantes a aprendizagem da língua, quer em contextos formais, quer informais, é fundamental.
Portugal tem tido a sorte de acolher muitos imigrantes de língua oficial portuguesa e em relação a algumas das outras comunidades com outra língua materna tem-se verificado uma extraordinária capacidade de aprendizagem. Mas mesmo assim é necessário agilizar quer este processo de aprendizagem do Português e chegar a comunidades que, por se manterem muito fechadas, são pouco permeáveis à aprendizagem da língua, como é caso das comunidades asiáticas.

Neste domínio são múltiplas as experiências relatadas no Manual de Integração da União Europeia. É crescente a tendência de tornar obrigatória a frequência de acções de formação na língua do pais de acolhimento e a institucionalização enquanto condição necessária à atribuição de renovações de títulos de longa duração. Esta inegável medida promotora da integração social pode, no entanto, esconder nalguns casos, mais uma estratégia de encerramento de fronteiras e de garantia de uniformidade das comunidades imigrantes no país de acolhimento e de exclusão de imigrantes que não adiram plenamente à norma instalada. Em políticas de imigração, como em muitas outras, nem sempre as boas intenções o são realmente.

Mas a integração cultural e linguística não se esgota no movimento desejável do imigrante aprender a língua de acolhimento ou adaptar-se aos traços culturais da sociedade anfitriã. Essa é uma visão egoísta e muito centrada da sociedade de acolhimento, sendo que também representa para ela um desperdício de recursos de inovação e diversidade que o imigrante pode representar. Assim, o imigrante recém-chegado não deve ser obrigado a abdicar da sua língua materna, da sua religião e dos seus costumes. Pelo contrário, deve ser incentivado a uma dupla pertença – sociedade de origem e sociedade de acolhimento - e deve mostrar-se disponível a partilhar com os autóctones a sua cultura e os seus costumes. Se a sociedade de acolhimento souber ser curiosa e aprender com quem vai chegando, esbate-se a ignorância que gera o medo e reforça-se a riqueza da diversidade cultural de sociedade que também se transforma com quem acolhe.

Num outra perspectiva, a integração dos imigrantes recém-chegados exige também a aprendizagem dos hábitos culturais e tradições da sociedade de acolhimento. E aqui reside uma das dificuldades mais subestimadas no processo de acolhimento e integração. Apesar de ser óbvia a diferença cultural de origem e acolhimento, muitas vezes na reflexão sobre imigração não se considera o “choque cultural” como um obstáculo sério com que os imigrantes se deparam. É que ao contraste soma-se ainda o sentimento de perda do seu referencial cultural de origem, que deixaram na sua pátria. Esta crise que tem vindo a ser estudada e que hoje constitui mesmo um campo de investigação na Medicina e na Psicologia, atinge por vezes uma expressão extrema através da depressão, da frustração e da desorientação. Numa abordagem muito interessante a este fenómeno em Espanha, Zlobina et al (2004) sublinham que “a pessoa ao abandonar a sua cultura de origem tem que adaptar-se ao novo contexto cultural que implica três aspectos: (i) a adaptação psicológica; (ii) a aprendizagem cultural (os conhecimentos e as competências sociais que permitem movimentar-se na nova cultura) e (iii) a realização das condutas adequadas para a resolução com sucesso das tarefas sociais”[1].
Parece evidente que este choque é tanto maior quando mais diferentes são as culturas de origem e de acolhimento, mas já não será tão óbvio – mas seguramente verdadeiro – que mesmo em culturas com maiores vínculos linguísticos e históricos as separa, por vezes distancias muito grandes. Para compreender melhor alguns dos eixos deste choque cultural é útil trazer a leitura de Inkeles e Levison (1969), citados no já referido artigo[2], que consideram as seguintes dimensões:
1) a relação com a autoridade – dimensão distância hierárquica
2) a concepção do “eu” e da relação do “eu” com a sociedade – dimensão individualismo/colectivismo
3) a concepção da masculinidade e da feminidade – dimensão masculinidade/feminidade
4) os conflitos e a sua resolução (expressão vs. inibição das emoções, incluindo o controle da agressão) – dimensão de afastamento da incerteza

Facilmente identificamos a partir desta grelha vários exemplos de choque entre culturas que se dão na vivência do imigrante, particularmente no recém-chegado. A relação difícil com o tempo, com a eficácia, com o “fazer” ou a incompreensão com a maior informalidade e individualismo são apenas alguns temas. É fundamental numa política de acolhimento e integração ter muito presente esta problemática, descodificando junto de cada parte – sociedade de acolhimento e imigrante – os significados das atitudes e das expressões do “outro” e estimulando a uma mútua adaptação.
Formar os funcionários da Administração é, neste contexto, muito importante. Esta formação deve ser extensiva, pró-activa e multisectorial e deve prever não só abordagens de problemáticas específicas da sua área profissional, como providenciar formação em domínios da interculturalidade, da gestão do choque cultural ou ainda da do ciclo de vida do imigrante. Os enquadramentos legais genéricos de combate á discriminação devem estar desdobrados em Códigos de conduta explícitos e claros, formalmente adoptados pelos Serviços.


[1] Zlubina (2004):46
[2] ibidem, pag. 48

28 novembro 2005

Pontes e Abismos. Em defesa do interculturalismo.

Desde os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos, bem como os que se seguiram em Madrid e em Londres, a crítica do multiculturalismo saltou para a agenda pública, como se nele residisse a causa do novo terrorismo internacional ou das tensões étnico-culturais na Europa. Destaca-se nessa crítica, que as sociedades ocidentais são excessivamente tolerantes e permissivas na aceitação no seu seio da diferença cultural e religiosa, deixando até medrar radicalismos que lhe são hostis. Importaria, segundo esta perspectiva, recuar nessa abertura e estabelecer outros referenciais mais fechados e, presume-se, mais uniformes em termos religiosos e culturais. Esta tendência tem vindo a consolidar-se entre o “politicamente correcto” como se fosse inevitável e urgente. Ora tal leitura é precipitada e perigosa.

Equívocos perigosos

Desde logo, este debate está distorcido em vários eixos. Ainda que se tente dissimular, o que perturba os europeus não é o multiculturalismo em si, mas as questões que uma leitura minoritária, radical e pervertida do Islão tem colocado nos últimos anos. É importante perceber que não é a diversidade cultural que efectivamente está em causa, mas o radicalismo fora-da-lei. E este, qualquer que ele seja, está fora do âmbito do multiculturalismo, que se constrói no respeito escrupuloso pelo quadro legal da sociedade onde se desenvolve. Para lá da Lei, não existe multiculturalismo.
Outro equívoco significativo resulta do facto de que nenhum país europeu - com excepção da Suécia e, parcialmente, a Inglaterra - adoptou consistentemente uma política multiculturalista. Os europeus culpam, assim, um modelo que efectivamente não praticaram. Os únicos exemplos sérios de multiculturalismo, enquanto política oficial do Estado, estão fora da Europa (Austrália e Canadá) e, curiosamente, estão longe desde debate. É a partir deles – e um pouco da experiência sueca – que se pode discutir se o modelo multicultural funciona ou não.
Por outro lado, importa perguntar se nos países que adoptaram uma outra política de gestão da diversidade cultural - como o assimilacionismo dos franceses ou diferencialismo dos alemães - estes problemas não se colocam ou estão resolvidos. A resposta é evidente: colocam-se e não estão resolvidos. E, por aquelas vias, dificilmente se resolverão.

O multiculturalismo como via exigente
Num mundo globalizado, de fronteiras ténues e com uma mobilidade humana crescente a presença da diversidade cultural não é uma opção: é uma realidade incontornável. Em 2001, a UNESCO, através da sua Declaração Universal da Diversidade Cultural sublinhava que “em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.”[1].

O multiculturalismo é, de todas as opções de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua. Este modelo permite às minorias étnicas a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da sua cultura ancestral, especialmente língua e religião, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade. De igual modo, defende a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos ou religiosos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e da discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.

Mas esta afirmação de princípios é só uma face da moeda. Há outra sempre presente no verdadeiro multiculturalismo. Tomando a Austrália como exemplo, o modelo multicultural exige a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluindo a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional, igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem os seus valores. No Canadá, entre os três objectivos essenciais do multiculturalismo está a unidade nacional (para além da igualdade e a participação social). Portanto, enganam-se aqueles que julgam ver no modelo multicultural o expoente máximo do laxismo e a origem da falta de coesão social.

Nenhum modelo é perfeito e definitivo. O multiculturalismo pode e deve evoluir. Uma direcção possível– o interculturalismo - acentua o seu carácter interactivo e relacional. Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento e miscigenação cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. Muito mais do que a simples aceitação do “outro” a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural propõe o acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro.
Assim importa, mais do que nunca, consolidar e aperfeiçoar o modelo de diálogo intercultural. Se não o fizermos podemos estar a destruir as pontes que nos farão muita falta no futuro próximo. Porque para isolar os radicalismos, precisamos mais de pontes do que abismos.

[1] Art.2 º da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.

in PÚBLICO, de 24 de Agosto de 2005

O voto dos dos imigrantes

Focados na dimensão económica, os imigrantes quase sempre valorizam pouco a sua participação política. É certo que as sociedades de acolhimento manifestam, nesse domínio, resistências significativas que os colocam fora dos principais processos eleitorais e isso resulta num natural desinteresse. Mas este é um domínio onde é desejável que se venham a registar evoluções significativas pois embora seja aparentemente secundário em relação às necessidades básicas é aí que se jogará parte do reforço efectivo das políticas de imigração, inspiradas não só pelo interesse da sociedade de acolhimento, mas também pelos legítimos interesses dos imigrantes.

Assim, a abertura à participação efectiva dos imigrantes em todos os actos eleitorais - e não só nas eleições autárquicas, e mesmo nessas condicionados ao princípio da reciprocidade - reforça a sua ligação à sociedade de acolhimento e representa uma verdadeira integração. Por outro lado, a participação política para imigrantes com títulos estáveis é fundamental para que os seus legítimos interesses tenham, no terreno democrático, uma forma de expressão e um peso efectivo. Hoje em dia, em sociedades democráticas como a nossa, é essa a forma certa dos cidadãos se expressarem e legitimamente influenciarem o poder legislativo e executivo.

Quem fica fora deste circuito “não existe”, acumula frustrações ou, pior ainda, canaliza estas frustrações para reacções desajustadas contra a sociedade de acolhimento. Foi já um avanço positivo viabilizar a participação dos imigrantes nas eleições locais, a nível autárquico, mas é necessário abrir outras esferas de participação, a nível legislativo e até a nível presidencial.

Esta participação política deve ser estimulada não só na sua dimensão passiva como na sua expressão mais activa, no quadro dos partidos políticos.

Admitindo uma estratégia gradualista que atenue receios da opinião pública nacional quanto a efeitos perversos dessa participação, parece razoável adoptar uma fase experimental de alargamento de todos os direitos políticos passivos e activos aos titulares de autorizações de residência permanentes que já residem em Portugal há cinco ou mais anos.

Este é um debate urgente, a bem da integração plena.

Nascer em ambiente de exclusão social

Um dos impactos mais dramáticos sobre muitas crianças e jovens descendentes de imigrantes resulta da particular vulnerabilidade social e económica das famílias onde nascem. Fruto da pobreza e de uma vida particularmente difícil, estas famílias lutam em condições profundamente adversas (entre emprego precário, salário baixo e incerto e horário de trabalho alargado) por um futuro que, muitas vezes, lhes foge. A pobreza gera, assim, exclusão social e esta pode atingir níveis trágicos de profunda ofensa à dignidade humana. Por exemplo, o simples facto de os pais começarem a trabalhar muito cedo e não existir nos seus bairros de residência suficiente rede de apoio pré-escolar, faz com que muitas destas crianças fiquem sozinhas, “fechadas na rua”, desde idades mínimas, não sendo improvável encontrar, em alguns destes bairros, crianças de três e quatro anos sozinhas na rua, durante todo o dia. Este facto só pode ter um resultado devastador.

Um outro nível a ter em consideração é a sensibilidade extraordinária destas famílias às crises sociais e económicas. São elas que estão na primeira linha dos que são atingidos pelo desemprego ou pelos salários em atraso, quando chegam os tempos difíceis. As alternativas rareiam e as consequências são muito funestas: destabilização familiar, incentivo ao abandono escolar, comportamentos desviantes,..

Por outro lado, os espaços residenciais ao alcance destas famílias são os mais desqualificados, com habitações precárias, espaços verdes e de lazer inexistentes, equipamentos sociais incipientes, maus acessos e transportes deficientes. Muitas vezes guetizados, estes espaços sub-urbanos constituem a paisagem, à nascença, para estas crianças.

No seio destes ambientes de exclusão social, florescem redes de actividades ilegais mais pesadas, que sabem que aí se encontram condições favoráveis para aliciamento de jovens – e menos jovens - que estão à margem, sem horizonte, nem esperança. Queremos sublinhar que não partilharmos de uma visão sistémica em que tudo depende do ambiente e dos sistemas em que o indivíduo se encontra inserido e, por isso, tudo lhe deve ser desculpado, desde que se prove esse contexto adverso. Há sempre uma capacidade de autodeterminação pessoal e de resiliência que permite, na esmagadora maioria destas crianças e jovens, extraordinários trajectos de vida, resistindo com carácter e coragem a esse caminho aparentemente mais fácil. Só que alguns não resistirão e serão recrutados para essas indústrias do mal.

No desfazer de equívocos, importa repetir que tudo o que até agora se descreveu resulta da exclusão social – essa é a pedra angular - por mecanismos socio-económicos que nada têm a ver com a origem nacional ou étnica das comunidades atingidas. Todos eles são válidos para crianças e jovens autóctones em igualdade de circunstâncias e verificam-se em diferentes cidades do nosso país.
No entanto, ao peso da exclusão social, já de si dramático, somam-se outras desvantagens.

Identidade e nacionalidade nas crianças e jovens descendentes de imigrantes

Apesar da discussão legítima se se deve falar de segunda e terceira gerações de imigrantes, no pressuposto que essa abordagem pode ser perversa por cristalizar um estatuto que perdura no tempo, mesmo para aqueles que não imigraram – já nasceram no país de acolhimento – é indesmentível que este grupo de crianças e jovens tem vulnerabilidades especiais que devem ser consideradas, tendo em vista a sua redução e anulação. Não defendemos, no entanto, que essa anulação de desvantagens arraste consigo a eliminação da sua memória cultural específica. A boa integração exige, em simultâneo com a plena cidadania e exercício da igualdade, que estas crianças e jovens possam manter, com orgulho, as suas origens, sem as enterrar.

É evidente, no entanto, que esse equilíbrio é difícil e da sua ausência decorrem algumas das mais tipificadas dificuldades de integração existentes. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão difícil de resolver que é ainda agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social em relação à sociedade de acolhimento, seja na recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de sub-culturas importadas.

Neste processo de crise identitária, é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas, essa exclusão, desde o berço, não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que encontram, muitas delas agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – às vezes, desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular. Ao mesmo tempo, a expressão dessa identidade rebelde é factor de reconhecimento inter-pares, dentro do grupo de referência, e de remuneração afectiva que estimula uma auto-estima quase sempre inexistente. Estranhamente - para o senso comum - esse mecanismo do “quanto pior melhor”, de violência sem móbil e de espiral em direcção a um abismo constitui-se, com uma lógica muito própria, como auto-justificação suficiente. Perante ela, saibamos reconhecer onde está a sua origem e não nos deixemos impressionar só pelo seu efeito.

Uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música têm sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro, a política ou a cultura fossem espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.

A questão da nacionalidade

Directamente ligado à questão identitária está o acesso à nacionalidade portuguesa que tem simultaneamente um impacto simbólico e consequências práticas. Como é conhecido, existem duas abordagens distintas: o jus sanguinis em que o acesso à nacionalidade se dá por descendência de um nacional (e.g. é português, o filho de um português) e o jus solis, em que o acesso da nacionalidade é aberto a todos aqueles que nasceram num determinado território, independentemente da nacionalidade dos pais. A aplicação destes modelos poder ser misto e com peso relativo diferenciado de cada um deles.

Estranhamente, Portugal adoptou, no passado recente, o modelo muito marcado pelo jus sanguinis aproximando-se, por exemplo, do modelo identitário alemão com o qual muito pouco temos a ver. É óbvio que esta opção está contextualizada num determinado período histórico – o pós-descolonização – mas deveria, trinta anos depois, ser repensada essa política.

Que sentido faz recusar – ou, no mínimo, dificultar significativamente - a nacionalidade a crianças que nasceram e sempre viveram em Portugal, comunidade que se constitui como o seu espaço de socialização e de pertença?

Parece evidente que esta opção produz, antes de mais, condições para uma exclusão e rejeição da sociedade que os viu nasceu e para os quais, não é mãe, nem sequer madrasta. Simplesmente, não os perfilhou.Somos, por isso, claramente defensores da virtude do modelo jus solis, opcional por parte dos progenitores em situação legal, que não sendo perfeito, tem um balanço muito mais positivo do que a versão oposta.

A nova Lei da Nacionalidade vem ao encontro desta preocupação. Em relação a crianças que um dos progenitores já nasceu em Portugal, o jus soli é automático, independentemente da situação legal do progenitor. É um grande avanço.
Também nos parece razoável que, por prudência e para construção de um consenso social e político alargado, se considere - como o faz a nova Lei da Nacionalidade - um período de legalidade de pelo menos um dos progenitores que, não tendo nascido em Portugal, possa evidenciar uma ligação mínima ao país de acolhimento e eventual futura pátria do seu filho(a).
Dessa forma, se cultivará desde criança, caso seja essa a vontade da família, um sentimento de pertença nacional e um modelo de comunidade mais diversificado e cosmopolita. Mais do que reforçar sistematicamente a importância do lugar de onde viemos, passaríamos a valorizar, os que aqui estamos, para onde vamos.
É esta a esperança que transporta a nova Lei da Nacionalidade.

27 novembro 2005

"Eram pr´ai uns 500! "

“Hoje um facto é verdadeiro não porque obedece a critérios objectivos, rigorosos e comprovados na fonte, mas simplesmente porque outros media repetem as mesmas informações e «confirmam» ... A repetição substitui-se à verificação. Se a televisão (a partir de um despacho ou de uma imagem de agência) apresenta uma notícia e em seguida a imprensa escrita e a rádio a retomam, tal basta para creditá-la como verdadeira”.
in Ramonet, Ignacio (1999) A Tirania da Comunicação


Em Dezembro de 1989, em plena convulsão do leste europeu, correram mundo as imagens de valas comuns descobertas em Timisoara que testemunhariam os massacres aí ocorridos, nos dias de levantamento da Roménia contra o ditador Ceaucescu. Falava-se de cerca de 4.000 mortos nesta cidade, num total de 70.000 em todo o país, em poucos dias de revolta. Tais imagens tiveram uma repercussão extraordinária nas opiniões públicas mundiais e respectivos governos. A pressão sobre Ceaucescu subiu a tal ponto que o fez cair. Julgado sumariamente, foi condenado com a sua mulher a execução imediata. O mundo rejubilou. A Roménia era livre. Poucos comentaram o facto de, mais tarde, se ter descoberto que as referidas imagens de valas eram falsas e não correspondiam a massacrados de Timisoara. Foi uma das maiores fraudes mediáticas já registadas.

Em 1999, em pleno Referendo timorense, sucediam-se as notícias trágicas de “mortes” de figuras relevantes da sociedade timorense - desde o pai de Xanana Gusmão, à Irmã Margarida ou o Padre Domingos Soares; anunciou-se também o desaparecimento de D. Basílio do Nascimento - com enorme impacto na opinião pública internacional. Mais tarde, veio a confirmar-se que não correspondiam à verdade.

Estes dois exemplos servem para recordar erros jornalísticos ao universo mediático e à opinião pública e deveriam consolidar aprendizagens a não esquecer facilmente. Nem sempre o que os media nos dizem é verdade.

Salvaguardando as devidas distâncias, os acontecimentos de Carcavelos podem vir a inscrever-se neste histórico de erros jornalísticos relevantes. Nesses acontecimentos, foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, - o dito “arrastão” – protagonizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque “vi na televisão” - consolidou definitivamente este “facto”.

Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, “a repetição substitui a verificação”. Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deveriam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com essa preocupação da procura aprofundada da verdade. Perguntas como “com 500 assaltantes no terreno só foram feitas 4 detenções?”, “com 500 assaltantes à solta na praia não se registaram feridos, a não ser os dois resultantes da intervenção da polícia?” “como é que se organiza um gang de 500 pessoas para um assalto?”, não constaram, aparentemente, do raciocínio jornalístico. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.

A adesão aos contornos extraordinários da notícia, ainda que inconsistentes, atraiu tanto jornalistas, quanto espectadores. Todos quiseram acreditar. Provavelmente, foi suficiente alguém – polícia, mirone ou comentador de oportunidade - dizer “eram pr´aí uns 500”, para que não mais a notícia descolasse deste número extraordinário, sem que este “facto” fosse colocado em questão. A gestão da informação veiculada pelas fontes é conhecida por todos e deve ser cuidadosa e enquadrada no seu registo de interesses próprios, não sendo expectável que se limitem a ser “objectivas” pois, normalmente, são parte interessada e activa no processo em causa, procurando gerir as notícias. Outras vezes, são tomadas como fontes fidedignas, vozes passantes, que aplicam um conjunto de filtros – preconceitos, erros de comunicação, excesso de protagonismo pessoal – ao facto concreto que descrevem e assim o alteram radicalmente. É a institucionalização do “diz que disse”.

Este aparente preciosismo – “ok, não são 500, são 50. Mas o problema é o mesmo” – pode parecer irrelevante face à gravidade do acontecimento. Ninguém coloca em causa que os actos ilícitos têm que ser punidos, na aplicação serena, isenta e equilibrada da justiça, olhando aos factos concretos e não ao ruído mediático. Mas não é isso que está, neste contexto, em discussão. Os acontecimentos de Carcavelos não teriam sido agendados e percepcionados da forma que o foram – topo de noticiários com longas coberturas, bem como primeiras páginas de jornais - se não tivessem estes contornos de “caso único no mundo”, que até televisões e jornais estrangeiros noticiaram. A expansão automática de um sentimento de insegurança, que levou os portugueses a evitarem a praia nos dias seguintes, só aconteceu graças à difusão mediática deste super-acontecimento, do qual todos falam e ninguém duvida. Mas que, provavelmente, não aconteceu da forma como é descrito.

Se o número avançado fosse de duas ou três dezenas de protagonistas activos nessa assalto, como parece indiciar uma análise mais cuidada das fotografias disponíveis do momento do assalto e como foi agora confirmado pela Polícia, a notícia não teria tido um décimo do impacto, nem causado as ondas de choque que se sucederam nos dias seguintes, até com miragens de novos “arrastões” em vários pontos do país. Este dimensionamento deu-lhe um estatuto inusitado, catapultando-a para um nível de agendamento mediático, público e político elevadíssimo.

Deste agendamento resultaram consequências que já são inapagáveis. Estigmas que aumentaram, insegurança difusa que se disseminou, preconceitos que se consolidaram.. De nada servirá a eventual verificação à posteriori do erro jornalístico, a não ser aprender para o futuro. A responsabilidade social e a cultura ética e deontológica dos jornalistas assim o exigem.

Artigo de Opinião publicado no PÚBLICO, em 18 de Junho de 2005

PS: Em parecer aprovado em 23 de Novembro de 2005, a Alta Autoridade para a Comunicação Social vem dizer que "...(os OCS) procederam, generalizadamente, com evidente falta de rigor informativo de isenção e de objectividade, não utilizando - pela diversificação e avaliação das fontes, pela ponderação adequada das circunstâncias, pelo recorte criterioso das primeiras informações, cedendo ao imediatismo, ao sensacionalismo e ao espectáculo, não identificando cuidadosamente as causas e sem pesar devidamente as consequências (...) assim transmitindo quer a nível nacional, quer internacional uma visão deturpada, enganadora, tendenciosa dos acontecimentos, com evidentes repercussões sociais indutoras do racismo e da xenofobia, contribuindo objectivamente para o reforço da exclusão social...."
A deliberação continua mais adiante "...a AACS lamenta que a generalidade dos meios de comunicação social tenha dado um claro tratamento discriminatório ao desmentido pela Polícia das descrições iniciais , praticamente omitindo-o ou menorizando-o, em vez de como seria desejável, terem vindo a assumir publicamente o seu erro e a sua quota de responsabilidade e formulado um pedido de desculpas que era devido à opinião pública em geral e ás comunidades de raça negra e de emigrantes em particular, especialmente visadas na forma deturpada da notícias dos factos.(...).

A integração laboral dos imigrantes

Um trabalhador imigrante tem, quase sempre, no seu local de trabalho o território de maior esperança. Aí se corporiza todo o sonho de trabalhar por uma vida melhor, para si e para a sua família. O trabalho, que usualmente enfrenta com enorme vontade e aplicação, representa o acesso a um salário, a transformar prioritariamente em remessas para o país de origem. Começando, muitas vezes, por empregos que os portugueses recusam, o imigrante dá o melhor de si mesmo para atingir o sucesso. Esta é uma das razões pela qual a mão-de-obra imigrante é tão apreciada pelos empregadores: com raras excepções são, desde o primeiro minuto, excelentes trabalhadores. Por outro lado, o país de acolhimento está perante um trabalhador em plena idade activa e no qual nada investiu, nomeadamente na sua formação inicial e profissional. Assim, a sociedade de acolhimento recebe a “custo zero” um determinado capital humano pronto a ser motor de produtividade e de geração de riqueza. Desde o início, o saldo é positivo para quem recebe imigrantes.

Neste contexto, devemos exigir que os empregadores ajam pela positiva, contribuindo para a boa integração do trabalhador imigrante e que, no mínimo, cumpram de forma etica e legalmente irrepreensível o quadro legal referentes às leis laborais, recusando a exploração vil de mão-de-obra imigrante.

É importante denunciar que, inúmeras vezes, os imigrantes são ludibriados no salário, nas horas de trabalho, no tipo de trabalho ou nas condições de alojamento associadas. Estes imigrantes, sem vínculos sociais nem instituições de suporte, não têm como recusar o que lhes é oferecido. Aceitam, revoltados, o que lhes impõem pois a sua vulnerabilidade não lhes permite qualquer reivindicação. Exige-se, nestes contextos de injustiça gritante, para além da existência de um quadro legal fortemente penalizador dos abusos e de mecanismos de protecção efectiva dos imigrantes nestas circunstâncias, uma crítica social que condene e condicione os empregadores que seguem este caminho. Se pelo contrário, o sentir comunitário não condenar estes comportamentos – ou chegar mesmo a admirá-los – não há Estado-fiscal que chegue a todos os recantos da economia.

O ambiente laboral representa também para a integração do imigrante um espaço de socialização com o seu novo “país” e a interacção com os colegas de trabalho é particularmente importante para o sucesso da integração. Por isso, não é demais sublinhar a responsabilidade dos trabalhadores portugueses quando têm perante si um imigrante. O acolhimento e a boa integração passará muito por eles.

Nesta integração laboral é de sublinhar igualmente a importância da participação do imigrante recém-chegado nas expressões associativas existentes, sejam intra-empresa (clube socio-cultural ou desportivo, por exemplo) seja extra-empresa, como o caso dos Sindicatos ou associações profissionais. Essa dinâmica de participação apesar de não ser corrente, deve ser fortemente estimulada para que o imigrante possa, tão rápido quanto possível, criar laços e pontes.

Uma outra dimensão decorrente da sua integração no mercado laboral é a constituição de direitos sociais. Sublinha-se como consequência do seu contributo a partir da remuneração para a Segurança Social e para a Administração Fiscal, por exemplo o pleno acesso ao sistema de saúde, no caso português, em condições de total igualdade aos cidadãos nacionais ou o direito a prestações sociais (seja a um futuro subsídio de desemprego, prestação familiar ou outro) cumpridos os necessários prazos legais. Note-se que estes eixos decorrentes da integração laboral são extraordinariamente importantes como factores de inclusão social. Havendo, para muitos imigrantes, uma enorme tentação de arrastamento para a economia informal, quer pela burocracia e obstáculos do sistema, quer pela atracção aparente das actividades na economia informal (p.e. remunerações mais altas no curto prazo) tem-se verificado que imigrantes que começam por estar legais e bem integrados entram em trajectórias centrifugas que terminam, mais tarde ou mais cedo, em exclusão social. Por isso, os diferentes parceiros sociais no domínio da imigração devem apostar na consolidação da integração laboral dos imigrantes no quadro legal, com vínculo efectivo ao sistema da segurança social e da saúde.

Saibamos acolher e integrar, em contexto laboral, os imigrantes que nos procuram e todos teremos a ganhar.

in Boletim Informativo ACIME - Novembro 2005

Interculturalidade e dupla pertença

A interculturalidade enquanto proposta de gestão da diversidade cultural, defende o princípio da múltipla pertença/filiação, evitando que o imigrante se veja obrigado a optar por uma pertença contra outra. Assim, ao mesmo tempo que na consolidação da sua presença na sociedade de acolhimento corresponderá, em situações normais, a uma progressiva adaptação e identificação com ela, deve ser respeitada e estimulada a ligação á sua cultura ancestral, que evite uma ruptura na sua vida. Essa ligação pode evidenciar-se na oportunidade de ensino da língua e cultura materna aos seus filhos, a celebração da memória, em expressões culturais e artísticas ou ainda na manutenção do convívio, mais ou menos estruturado, com seus os conterrâneos radicados na mesma sociedade de acolhimento. Estas expressões devem ter uma janela de exposição para a sociedade de acolhimento, nomeadamente na arte e na cultura, que reforce a auto-estima dos seus protagonistas bem como consolide o conhecimento e o afecto que a sociedade de acolhimento deve nutrir pelas comunidades migrantes que nela se instalam.

Uma outra plataforma desejável e ainda mais equilibrada, é a assunção clara e consciente da miscigenação como um caminho positivo e enriquecedor. Mais do que fazer conviver múltiplas pertenças, a sua fusão gerará novos padrões de diversidade que têm inúmeras vantagens para a sociedade e para o indivíduo.

Esta perspectiva tem como consequência política a abertura à aquisição de nacionalidade do país de acolhimento, por naturalização, num quadro de dupla nacionalidade. Sem rupturas e sem rejeições, os imigrantes, agora cidadãos de dupla nacionalidade - do país de origem e do país de acolhimento - atingiriam um estado mais perfeito de integração e representariam, além de tudo, uma extraordinária ponte de afectos entre essas duas comunidades.