15 junho 2006

O "pseudo-arrastão" de Carcavelos - Uma verdade por repor

Um ano depois dos acontecimentos na praia de Carcavelos, aos quais se convencionou chamar “arrastão” e após todos os relatórios e esclarecimentos públicos permanece, para muitos, a convicção que, no dia 10 de Junho de 2005, se realizou um gigantesco assalto em Carcavelos, conduzido por 500 jovens negros, vindos de bairros degradados.

O erro mediático em torno dos acontecimentos de Carcavelos foi grave. A partir de uma notícia falsa, reforçou os preconceitos e a desconfiança face a uma população de jovens descendentes de imigrantes africanos, consolidando o estigma já existente que os relaciona com a criminalidade.

Não se julgue, no entanto, que neste processo os culpados são só os jornalistas. A culpa reparte-se, ainda que em proporções diferentes, por todos nós: pelas fontes policiais e populares que induziram os jornalistas em erro; pelos jornalistas que foram difusores de uma notícia falsa que nunca desmentiram com o mesmo destaque, pelos políticos que a comentaram sem cuidar de a verificar convenientemente e, finalmente, pelos espectadores e pelos leitores que ainda hoje continuam a acreditar no “pseudo-arrastão”.

Mas, nesta ocasião, importa focar a reflexão sobre a responsabilidade dos jornalistas.

Coloca-se, neste processo, entre outras questões, uma relevante discussão da relação dos jornalistas com as fontes. Segundo a LUSA , a fonte da qual partiu a informação para a construção da notícia foi a PSP. Colocar-se-ia, desde logo, a necessidade de exercer sobre a informação um sentido crítico de avaliação da credibilidade e da consistência. Admite-se que nos “directos”, em cima do acontecimento, não existissem condições de distanciamento e de reflexão crítica perante tal informação. Mas já é mais difícil explicar que, nos dias seguintes, quase ninguém tenha questionado esse facto, sobretudo quando um acontecimento de tal magnitude gera somente quatro detenções e dois feridos (todas resultantes de agressões a agentes da autoridade ou de acções destes) e uma (!) queixa de furto.

No dia 16 de Junho, a mesma fonte vem corrigir os dados iniciais dizendo que: " De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícitos". E mesmo este suposto número de participantes continuava a não ser consistente com uma só queixa apresentada. é Obviamente dá-se, neste contexto, uma situação jornalisticamente relevante: uma fonte reconhece que errou (sublinhe-se, aliás, que é o único protagonista neste processo que reconhece o erro e por ele se penitencia). Logo, o jornalista/meio de comunicação deveria, com igual destaque da noticia anterior, comunicar o erro aos seus leitores e, se possível, justificá-lo, bem como elaborar um pedido de desculpas, em primeiro lugar, aos visados, mas também ao público em geral. Este desmentido ocupava, nalguns casos, uma escassa coluna, não tendo qualquer destaque especial e pedido de desculpas nunca houve.

Com efeito, ao contrário do que depois se quis fazer crer, este erro não é pouco importante. Nesses acontecimentos, foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, protagonizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número, avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque “vi na televisão” - consolidou definitivamente este “facto”.

Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, “a repetição substitui a verificação”. Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deveriam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com uma preocupação da procura aprofundada da verdade. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.

Como segundo erro particularmente grave, a utilização abusiva, ainda que involuntária, de imagens que foram apresentadas como sendo do “arrastão”. A PSP, segundo relato da LUSA, esclarecia em 16 de Junho de 2005: "Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres". Ou seja, operou-se uma manipulação gravíssima através das fotografias publicadas, fazendo crer que se tratava de imagens do arrastão, quando, segundo este responsável da PSP, eram pessoas a fugir da chegada da polícia. Como foi isto possível? Hoje é conhecida a autoria das referidas fotos e respectivas legendas: não é de um fotógrafo-jornalista, obrigado a um código de ética, mas sim de um “cidadão-jornalista” que as produziu e legendou como quis, fornecendo-as a meios que as consumiram sem cuidado. Esse facto deveria merecer uma reflexão séria sobre a credibilidade do “cidadão-jornalista”.

Mas o erro mais grave que perdura no tempo é o erro de não corrigir os erros. E aí estaremos perante uma das maiores dificuldades da cultura jornalística dos nossos dias e uma das ameaças que impende sobre a credibilização desta actividade.

Importa, como já foi dito, reforçar que se deve recusar a visão simplista de culpar os jornalistas de tudo. É uma leitura básica e injusta. Muitos são os condicionalismos que limitam o trabalho jornalístico (tempo, espaço, fontes, concorrência, ..) e, nesse contexto adverso, muitos são os jornalistas que fazem um trabalho sério e profissional, no qual não estão, no entanto, isentos de erro. É a sua capacidade de autocrítica e a auto-regulação que pode prestigiar e continuar a dar-lhes um papel central nas democracias contemporâneas. Ao invés, se essa capacidade se anula e se se escudam numa lógica defensiva corporativa que não reconhece erros, os jornalistas e os meios deixam de cumprir a sua missão. E sobre o “pseudo-arrastão” ainda não os ouvimos pedir desculpa.

(Público, 12 Junho 2006)

14 junho 2006

Uma oportunidade para uma Lei melhor

Há um consenso alargado que o actual enquadramento legal da entrada, permanência e saída e afastamento de estrangeiros de Portugal – vulgo lei da imigração – é deficiente. Longe de viabilizar a imigração legal, quer porque burocratiza infernalmente a vida dos empregadores e dos candidatos a imigrantes, quer porque afasta da legalidade muitos imigrantes que já haviam estado legais, esta lei não serve os interesses de ninguém. Mesmo os esforços em sede de regulamentação, que procuraram abrir algumas portas que a lei tinha fechado, não se revelaram suficientes e os resultados ficaram muito aquém do desejável.

Apesar de não ser boa política a mudança recorrente das leis, visto que essas alterações causam instabilidade e confusão, não é sensato manter tudo na mesma, quando manifestamente a lei se tornou num pesadelo. É o caso actual.

O actual Governo, depois de uma avaliação detalhada, veio propor uma nova proposta de lei da imigração. Saúda-se, desde já, a coragem de mudar o que está mal, bem como a proposta de colocar em discussão pública a proposta, num quadro de incentivo à participação e co-responsabilidade de todos na construção do novo modelo.

Esta abordagem deve ter como correspondência uma ampla participação no debate público, por parte de todas as associações de imigrantes, ONGs, paróquias, sindicatos, empregadores e outros actores sociais que interagem com a questão da imigração. Os seus contributos, apresentados em clima de cooperação madura e responsável, podem representar uma mais-valia no aperfeiçoamento da nova lei e uma desejável apropriação de um enquadramento jurídico em que todos - ou pelo menos uma ampla maioria – se revejam.

A política de imigração, nos dias que correm, é para qualquer país europeu um tema complexo, rico em contradições e cheio de inquietações. Ocupa o topo da agenda pública e merece toda a atenção política. Na sua gestão, há abordagens diferentes, entre as quais se destacam opções arrogantes e parciais que, atrás de um qualquer populismo, servindo-se de todas as demagogias, fazem desta questão uma arma de arremesso e de combate para outras guerras. Esse é um caminho errado e perigoso.

Evitar a todo o custo que a política de imigração se torne em Portugal uma causa fracturante - como o é noutros países – é uma das “regras de ouro” que prosseguimos incansavelmente. A procura constante de respostas eficientes e adequadas, bem como de plataformas consensuais onde convirjam a maioria dos cidadãos representa o melhor serviço aos imigrantes e a Portugal. Uma das condições essenciais para que se mantenha esse consenso na sociedade portuguesa passa, seguramente, pelo exercício de participação cívica na reforma legislativa que se avizinha. Temos ao nosso alcance a oportunidade de dispor de uma Lei melhor, que será tanto melhor, quanto mais corresponda a um resultado de uma reflexão colectiva alargada, onde todos participem. É esse o desafio que hoje importa reforçar.

(editorial BI Junho)