10 abril 2007

Diversidade e Identidade Nacional na União Europeia:

O debate europeu sobre diversidade e identidade nacional está actualmente marcado por importantes tensões. Particularmente, sob fogo cerrado, tem estado o multiculturalismo que, de conceito em moda, se transformou em ideia proscrita.

Com efeito, especialmente depois dos atentados em Londres e dos assassinatos de Fortuyn e Van Gogh na Holanda, dizem as vozes autorizadas que o multiculturalismo faliu e que nada mais há a esperar de uma visão que considera a diversidade como estruturante e identitária. Alguns vão mesmo mais longe e também conseguem ver nos tumultos juvenis em França outra falência do multiculturalismo, ainda que tal modelo nunca tenha existido na sociedade francesa.

A crítica do multiculturalismo saltou assim para a agenda pública, como se nele residisse também a causa do novo terrorismo internacional ou das tensões étnico-culturais na Europa. Nessa crítica, destaca-se o argumento que as sociedades ocidentais são excessivamente tolerantes e permissivas na aceitação no seu seio da diferença cultural e religiosa, deixando até medrar radicalismos que lhe são hostis.

Importaria, segundo esta perspectiva, recuar nessa abertura e estabelecer outros referenciais mais fechados e, presume-se, mais uniformes em termos religiosos e culturais. Alguns acreditam ser desejável uma renovada hegemonia cultural ou religiosa, como movimento antagónico ao pluralismo dominante e, particularmente, às suas expressões mais perturbantes. Ainda que começando só pela afirmação da necessidade de um núcleo comum de valores, em torno dos quais se desenvolva uma coesão social, a sua ambição evidencia muito mais do que isso. Nasce assim um neo-assimilacionismo, revisto e aumentado.

Os discursos sobre os “valores ocidentais” que então emergem, bem como a recuperação da valorização da matriz grego-judaico-cristã da Europa, surgem, muitas vezes, não como expressões de uma convicção profunda nesse referencial mas como expedientes defensivos para barrar o caminho às ameaças percepcionadas. Esta tendência tem vindo a consolidar-se entre o “politicamente correcto” como se fosse inevitável e urgente. Ora tal leitura é precipitada e perigosa.

Ainda que se tente dissimular, o que perturba os europeus não é o multiculturalismo em si, mas as provocações que uma leitura minoritária, radical e pervertida do Islão – os salafistas jihadistas - tem colocado nos últimos anos. Centremos aí o início da questão. É importante perceber que não é a diversidade cultural que essencialmente está em causa, mas o radicalismo fora-da-lei.

Só que a forma inábil com que temos lidado com esta questão teve como efeito indesejado uma terrível espiral que está ainda em expansão. A partir de uma energia de activação – um atentado, um motim, uma declaração radical... - desencadeou-se um processo destrutivo da coesão social que assume consequências incomparavelmente maiores do que o impacto inicial.

O enquadramento escolhido, a generalização e essencialização dos protagonistas, o enviesamento provocado pelos critérios de noticiabilidade empurram-nos para o que queríamos evitar. Esse fenómeno gera efeitos colaterais de desconfiança e de estigmatização que são terríveis e provocam grandes estragos.

Com toda a ingenuidade do mundo, de certa forma, temos feito o jogo dos extremistas, dando-lhes de barato uma vitória que, pelos seus próprios meios, jamais estaria ao seu alcance. Com os nossos erros, ajudámo-los no seu ambicionado choque de civilizações. Este para vingar, entre outras condições, precisa de destruir a convicção de que é possível uma sociedade multicultural. E também aí arriscamo-nos a fazer o seu jogo.

O multiculturalismo faliu?

Assim, a contra-ciclo, importa questionar algumas certezas do momento, nomeadamente esta falência do multiculturalismo.

Comecemos por apontar alguns equívocos. De que falamos, quando nos referimos a “multicultural”? Olhamo-lo sobretudo como adjectivo de uma política ou como traço caracterizador de uma sociedade? Não é de somenos importância esta nuance.

As tecnologias de informação e comunicação, a mobilidade humana, os meios de comunicação planetários ou uma economia de redes e fluxos empurram-nos para uma estrutura social marcada pela diversidade, sempre presente em tudo e em todos. Acrescenta-se a esta equação, a consolidação, no mundo ocidental, do pluralismo como valor em si mesmo e da liberdade individual como afirmação constitutiva e estruturante das nossas sociedades.

A percepção de que estas transformações nos trouxeram, inexoravelmente, uma sociedade multicultural é fundamental, para que percebamos que não é sequer viável discutir se queremos, ou não, uma sociedade multicultural. “Sociedade” é hoje sinónimo de “multicultural”. É um facto incontornável. Não laboremos, portanto, num equívoco. Não se trata de uma opção que esteja ao alcance das nossas vontades.

Mas se olharmos para o multicultural enquanto política de gestão da diversidade cultural aí já estamos num domínio de uma opção entre várias, tipicamente arrumadas entre o assimilacionismo, o segregacionismo e o multiculturalismo.

Enquanto política também o multiculturalismo é vítima de equívocos. O principal é gerado, desde logo, por se tornar uniforme aquilo que é plural. Não há uma “política multicultural”, mas sim uma variedade de experiências, muito diferentes entre si, ainda que possam todas elas partilhar a mesma marca. Mas é evidente que o comunitarismo inglês é substancialmente diferente do multiculturalismo canadiano e este, por sua vez, tem pouco a ver com as experiências multiculturais holandesa ou sueca.

Destas confusões decorre que, muitas vezes, se define mal “multiculturalismo” e se lhe atribui injustificadamente características que não lhe são intrínsecas. O caso típico é a associação da política multicultural a uma expressão de relativismo absoluto, onde tudo é possível e igual. Ora, esta leitura é falaciosa.

Tomando a Austrália como exemplo, o modelo multicultural exige a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluindo a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional, igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem os seus valores. Por seu lado, no Canadá, entre os três objectivos essenciais do multiculturalismo está a unidade nacional (para além da igualdade e a participação social). Portanto, enganam-se aqueles que julgam ver no modelo multicultural genuíno, o expoente máximo do laxismo e a origem da falta de coesão social. Para lá da Lei, não há multiculturalismo.

Mas se quisermos encontrar elementos comuns nas definições de multiculturalismo descobriremos a aceitação e legitimação da especificidade cultural e social de minorias, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade, atribuindo ao Estado um papel muito importante na construção do modelo. Defende-se, neste contexto, a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da cultura étnica, especialmente língua e religião, a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.

Esta dimensão de igualdade de direitos e de deveres é fundamental, pois sem ela uma política multicultural pode ser perigosa. Bem como é essencial sublinhar que o combate às desigualdades socio-económicas que se sobrepõem à diversidade etnocultural deve ser estruturante das sociedades democráticas. A coincidência da exclusão socio-económica com o estatuto de minoria etnocultural pode ser fonte de inúmeros equívocos e rastilho de muitas explosões.

Numa outra dimensão, acresce ainda que cada um dos modelos nacionais de política multicultural é dinâmico e uma leitura desactualizada é fonte de novos equívocos.

Por exemplo, o modelo multicultural canadiano tem sofrido uma evolução onde se evidenciam três etapas : de uma fase inicial, nos anos 70, onde destacam a sua dimensão étnica, com a metáfora do mosaico cultural a guiar a sua construção, para uma etapa posterior, nos anos 80, onde o discurso se centra na equidade, concretamente na igualdade de oportunidades, usando como metáfora a "nivelação" até finalmente nos anos 90 se chegar ao multiculturalismo cívico, onde se sublinha sobre tudo o combate à exclusão social, por via da inclusão e se utiliza a metáfora da "pertença". Este foco na construção de uma sociedade inclusiva, onde se apela a uma cidadania plena de todos os cidadãos, sem que devam abdicar dos seus traços distintivos representa um forma muito distante do modelo criticado de fragmentação e de "ilhas sem pontes" que os adversários do multiculturalismo apontam.

Dito isto, importa assumir que as experiências de políticas multiculturais estão longe de ser perfeitas e têm um longo caminho de aperfeiçoamento a percorrer. Este exemplo das fases do multiculturalismo canadiano é bem ilustrativo desse desafio. Provavelmente, a incapacidade em alguns países europeus de fazer evoluir esta política, leva-nos a transformar o multiculturalismo, no dizer de Amartya Sen, numa “pluralidade de monoculturas separadas”. Ora aqui se define a questão nuclear e o factor crítico de sucesso do multicultural: o transformar-se em “Intercultural”. O passar da simples afirmação e reconhecimento da existência de um arquipélago de diferentes realidades culturais para o foco nas “pontes” e nas consequências daí decorrentes, nomeadamente a polinização cruzada e a miscigenação.


A defesa de um modelo intercultural na gestão da diversidade


Portugal tem afirmado a sua opção de gestão da diversidade cultural, nomeadamente no acolhimento e integração de imigrantes, através de um modelo intercultural, que deriva das políticas multiculturais e as aperfeiçoa.

O seu foco essencial é, numa sociedade multicultural, reforçar o sentido de pertença e a construção participada de uma comunidade de destino, partindo do respeito mútuo pela diversidade, considerada um valor em si mesmo.

Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades e indivíduos, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento e miscigenação cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. É uma dinâmica interactiva e relacional. Muito mais do que a simples aceitação do “outro” a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural propõe o acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro, decorrendo daí um novo “Nós”. Sempre plural, mas também coeso.

Nessa linha, em 2001, a UNESCO, através da sua Declaração Universal da Diversidade Cultural sublinhava que “em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.”.

Esta abordagem da interculturalidade aceita também o princípio da múltipla pertença/filiação, evitando situações em que alguém seja obrigado a optar por uma pertença contra outra. Como consequência prática, ao mesmo tempo que a consolidação da sua presença na sociedade de acolhimento corresponderá, em situações normais, a uma progressiva adaptação e identificação com ela, deve ser respeitada a ligação à sua cultura ancestral, que evite uma ruptura na sua vida.

Essa ligação pode evidenciar-se, num exercício individual, livre e autónomo, na oportunidade de ensino da língua e cultura materna aos seus filhos, a celebração da memória, em expressões culturais e artísticas ou ainda na manutenção do convívio, mais ou menos estruturado, com seus os conterrâneos radicados na mesma sociedade de acolhimento. Estas expressões devem ter uma janela de exposição para a sociedade de acolhimento, nomeadamente na arte e na cultura, que reforce a auto-estima dos seus protagonistas bem como consolide o conhecimento e o afecto que a sociedade de acolhimento deve nutrir pelas comunidades migrantes que nela se instalam.

Note-se, para que não restem dúvidas, que a política intercultural desenvolve-se sempre e só no quadro dos Direitos Humanos, da Democracia, do Estado de Direito com o primado da Lei. Do lado das obrigações, mas também dos direitos. Mas não admite que existam uns “mais iguais que outros”, nem assume a Lei como algo de cristalizado e imutável. É certo que não abdica que as transformações sociais, codificadas na Lei, devem ser democráticas e fruto da plena participação. Mas esta visão defende intransigentemente que todos devem participar nesta transformação, em igualdade de circunstâncias, e que evoluções são possíveis.

Nesse contexto, um aspecto crítico para o sucesso de uma politica intercultural que cultive o sentido de pertença é participação política dos imigrantes na sociedade de acolhimento. Portugal, como outros países, permite já a participação politica ao nível local, ainda que condicionada ao princípio da reciprocidade, o que viabiliza a participação de cerca de 50% dos imigrantes residentes. Ainda assim é necessário ir mais longe. Esta maior abertura está em discussão em Portugal, passando pela possibilidade da supressão do princípio da reciprocidade e, mais tarde, pelo alargamento da participação política a todos os níveis para os residentes de longa duração. Este caminho de alargamento da participação política é, na nossa perspectiva, fundamental para permitir aumentar o seu sentido de pertença, partilhando direitos e responsabilidades na construção de um futuro comum. Só através da plena participação política será possível canalizar adequadamente a representação dos interesses legítimos da população imigrante, através do sistema partidário existente, no quadro de uma democracia representativa. Por outro lado, só essa participação co-responsabiliza os eleitores de origem imigrante nas escolhas políticas feitas – também – por si.

A opção intercultural é, de todas as políticas de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua.

Neste contexto, o desafio que se coloca à redefinição da identidade nacional em Portugal é uma enorme oportunidade. Precisamos de nos rever e de saber reler a nossa identidade. Ao fazê-lo, no caso português, encontraremos seguramente uma identidade de fusão, com uma rede de estradas que se foram cruzando desde a sua origem até a actualidade, na imagem de Malouf. E se assim definida a nossa identidade nacional, nela encaixará perfeitamente a diversidade deste novo “Nós”. Seremos, por isso, um país cheio de sorte, reencontrados com a nossa identidade de sempre e capazes de construir uma comunidade de destino que seja intercultural, coesa e com futuro.

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