18 abril 2007

Acolher e integrar através da Escola

Portugal tem vindo a tornar-se progressivamente num país de acolhimento de imigrantes. E com eles, vão chegando à nossa sociedade os seus descendentes, através do reagrupamento familiar ou do natural desenvolvimento das famílias. Este novo panorama multicultural na sociedade portuguesa e, particularmente no nosso sistema educativo, representa um enorme desafio para todos os protagonistas, para o qual somos todos convocados.

Para lhe dar a justa resposta será bom que comecemos por ter consciência de algumas vulnerabilidades específicas que estas crianças e jovens experimentam.

O primeiro desafio que importa sublinhar é o conflito identitário. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão difícil de resolver que é ainda agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social, em relação à sociedade de acolhimento, seja em recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de sub-culturas importadas.

Neste processo de crise é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas essa exclusão desde o berço não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que algumas encontram, por vezes agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular. Ao mesmo tempo, a expressão dessa identidade rebelde é factor de reconhecimento inter-pares, dentro do grupo de referência, e de remuneração afectiva que estimula uma auto-estima quase sempre inexistente. Estranhamente - para o mainstream - esse mecanismo do “quanto pior melhor”, de violência sem móbil e de espiral em direcção a um abismo constitui-se, com uma lógica muito própria, como auto-justificação suficiente. Perante ela, saibamos reconhecer onde está a sua origem e não nos deixemos impressionar só pelo seu efeito.

Ao invés, uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música tem sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro, a política ou a cultura fossem também espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.

Se a questão do conflito identitário é específico das crianças e jovens descendentes de imigrantes, a exclusão social não o é, pois toca a crianças e jovens autóctones com igual severidade. Só que em relação às crianças e jovens descendentes de imigrantes é mais uma parcela a somar na conta das desvantagens comparativas.

Fruto da pobreza e de uma vida particularmente difícil, estas famílias lutam em condições profundamente adversas, entre emprego precário, salário baixo e incerto e horário de trabalho alargado por um futuro que muitas vezes lhe foge, apesar desse sacrifício. A pobreza gera, assim, exclusão social e esta pode atingir níveis trágicos de profunda ofensa à dignidade humana. Por exemplo, o simples facto de os pais começarem a trabalhar muito cedo e não existir nos seus bairros de residência suficiente rede de apoio pré-escolar, faz com que muitas destas crianças fiquem sozinhas, “fechadas na rua”, desde idades mínimas, não sendo improvável encontrar em alguns destes bairros crianças de três e quatro anos sozinhas na rua, durante todo o dia. Este facto só pode ter um resultado devastador.

Um outro nível a ter em consideração é a sensibilidade extraordinária destas famílias às crises sociais e económicas. São elas que estão na primeira linha dos que são atingidos pelo desemprego ou pelos salários em atraso quando chegam os tempos difíceis. As alternativas rareiam e as consequências são muito funestas: destabilização familiar, incentivo ao abandono escolar, comportamentos desviantes,..

Por outro lado, os espaços residenciais ao alcance destas famílias são os mais desqualificados, com habitações precárias, espaços verdes e de lazer inexistentes, equipamentos sociais incipientes, maus acessos e transportes deficientes. Muitas vezes guetizados, estes espaços sub-urbanos constituem a paisagem à nascença para estas crianças. Apesar de progressivamente virem a desenvolver um paradoxal sentimento de protecção dentro do bairro, no qual se começam a encerrar, todo o contraste com o mundo circundante é muito marcado. As comparações são inevitáveis e as crianças têm muito maior dificuldade em aceitar como inevitáveis e “normais” as desigualdades no Mundo.

Uma outra expressão deste contraste e desta tensão verifica-se ao nível do consumo. Estas crianças e jovens são “bombardeadas” como todas as outras – aí não há diferença – com os múltiplos apelos ao consumo. Difere, no entanto, o poder de compra. O baixo nível de vida liberta poucos recursos para o consumo de bens não essenciais e estas crianças e jovens confrontam-se com a permanente frustração de não aceder a esses bens, que acumula com todo o restante passivo. É, nesse contexto, significativo que a pequena criminalidade infanto-juvenil que se gera nestes meios tem como móbil prioritário nos objectos a furtar, roupa de marca, telemóveis, sapatos de ténis de marca... remetendo sempre para esse imaginário de sociedade de consumo sempre imposta e nunca alcançada.

No seio destes ambientes de exclusão social, florescem redes de actividades ilegais mais pesadas, que sabem que aí se encontram condições favoráveis para aliciamento de jovens – e menos jovens - que estão à margem, sem horizonte, nem esperança. Espantosamente, a maioria consegue resistir e tem carácter e coragem para, contra todas as adversidades, não seguir esse caminho aparentemente mais fácil. Só que alguns não resistirão e serão recrutados para essas indústrias do mal.

Queremos sublinhar que não partilharmos de uma visão sistémica em que tudo depende do ambiente e dos sistemas em que o indivíduo se encontra inserido e, por isso, tudo lhe deve ser desculpado, desde que se prove esse contexto adverso. Há sempre uma capacidade de autodeterminação pessoal e resiliência que permite na maioria destas crianças e jovens extraordinários trajectos de vida. Mas não podemos ignorar que nós somos “nós e as nossas circunstâncias”.

No desfazer de equívocos, importa repetir que o que até agora se descreveu resulta da exclusão social por mecanismos socio-económicos que nada têm a ver com a origem nacional ou étnica das comunidades atingidas. Todos eles são válidos para crianças e jovens autóctones em igualdade de circunstâncias e verificam em diferentes cidades do nosso país.

Descrito um sumário diagnóstico de algumas desvantagens das crianças e jovens descendentes de imigrantes importa agora sublinhar o potencial que a Escola pode representar para contrariar estas vulnerabilidades.


A Escola inclusiva

A Escola pode cumprir um papel extraordinário na boa integração destas crianças e jovens e, através deles, das suas famílias. É uma das novas variantes da missão de tornar a Escola permanente e universalmente inclusiva.

Neste contexto, a configuração multicultural de muitas das nossas Escolas coloca assim um novo desafio para o qual o sistema educativo não está, em geral, devidamente preparado e que se acrescenta a outros que atingem globalmente este sistema. A gestão da diversidade, associada a uma quase sempre presente situação de exclusão social de muitas destas crianças provenientes de comunidades minoritárias, representa uma vivência partilhada por muitas escolas e seus professores, que se vêem forçados a novas estratégias e novas abordagens. Estigmatizadas muitas vezes como “Escolas-problema” a evitar, são também – muitas delas – extraordinários exemplos de respostas inovadoras. Assim, os docentes enfrentam o desafio de alargar a sua formação para a interculturalidade, devendo ser incentivados a que conheçam a especificidade sócio-cultural dos seus alunos, bem como para que estabeleçam estratégias pedagógicas adequadas a esta diversidade que inclua o reforço da relação estreita com o contexto familiar destes alunos. Convergindo com este esforço, é fundamental a criação e distribuição de materiais pedagógicos de suporte à educação intercultural e anti-racista.

É seguramente muito importante que se faça da diversidade uma oportunidade de aprendizagem ao ritmo de um mundo global, partilhando tradições e traços culturais, competências e saberes. Os projectos educativos devem saber integrar na dinâmica da sala de aula - e fora dela - essa diversidade presente nos seus alunos. Mas, ao mesmo tempo, devem cultivar a evidência do nosso património comum enquanto humanos, que em tudo nos aproxima apesar das diferenças. Na Escola deve ser possível aprender a diversidade na unidade.

Às crianças, filhas de imigrantes, deve ser viabilizado não só o acesso à educação, em igualdade de circunstâncias com as outras crianças, como devem ser desenvolvidas acções positivas que reduzam algumas desvantagens contextuais que estas crianças enfrentam. Uma delas, talvez a mais relevante, passa pelo reforço, desde os primeiros anos de vida, da aprendizagem da língua em que vai fazer o seu processo educativo. As dificuldades de aprendizagem e níveis de insucesso escolar evidenciados por algumas crianças imigrantes, radicam na sua dificuldade de entender e se expressar na língua do país de acolhimento. Mas se estas dificuldades forem vencidas, para além do sucesso escolar, estas crianças e jovens proporcionam a primeira e privilegiada ponte linguística da sua família com a sociedade maioritária. Muitas vezes, é com eles e através deles que os pais aprendem e comunicam.

Uma outra acção positiva a desenvolver, no caso de crianças que chegam ao país de acolhimento já em pleno processo de escolarização, passa por apoiar a criança no seu “choque cultural” com um novo sistema de ensino que pode ser substancialmente diferente do que conheceu no seu país de origem, bem como apoiá-la a ultrapassar a saudade e a quebra de laços afectivos. A sua integração nas dinâmicas escolares deve ser estimulada e acompanhada e a experiência de que é portadora deve ser valorizada junto dos colegas e representar ela própria um recurso para a educação intercultural e a formação para a diversidade.

A Escola não deveria aceitar, sem uma incansável luta, a perda de muitas destas crianças, por via do absentismo e do abandono escolar. Cada vez que isso acontece é toda a sociedade que é derrotada. A particular atenção, desde a chegada da criança à escola, à redução das suas desvantagens competitivas que começam na frágil rede de suporte familiar, na habitação que não dispõe de condições necessárias para que possa estudar quando chega a casa, na ausência de materiais de apoio escolar, ou ainda nas carências básicas na alimentação, deve motivar fortemente toda a comunidade escolar. Como em relação a crianças portuguesas em iguais circunstâncias sociais, a Escola deve ser capaz de dar uma resposta precoce a estas limitações, não esperando que surjam os sinais de desintegração e de insucesso. Ao investimento colocado em sala de aula deve somar-se outro pelo menos tão relevante em relação ao tempo extra-lectivo em que uma Escola inclusiva pode dar ainda muito a estas crianças. O estudo acompanhado, o apoio psicológico e social, o apoio em material de apoio pedagógico, nomeadamente através de empréstimos da biblioteca escolar, são alguns dos exemplos. O regime de tutoria que quer o director de turma, quer outros membros da comunidade escolar devem desenvolver junto destas crianças pode ser também um importante elo de ligação. Nesta missão, a Escola deve ser capaz de trabalhar em rede com outras instituições da comunidade – autarquias, associações, clubes desportivos,.. – de forma a potenciar uma acção integrada e extensiva que atinja elevada eficácia tendo em vista o combate à exclusão.

Para as crianças descendentes de imigrantes, a Escola deve ser também um tempo e um espaço onde se exercita a Educação para a cidadania, expressa entre outras formas, pelo apelo à sua plena participação cívica, política e social na sociedade de acolhimento, sem discriminação, nem anulação da sua identidade própria. È na escola que se começará a ganhar ou se perder um cidadão(ã) de pleno direito.

Para a boa inserção destas crianças nas Escolas, pode ser útil e adequada a existência de mediadores socio-culturais, provenientes da própria comunidade de origem ou da comunidade maioritária, que funcionem como facilitadores e interfaces que quebrem isolamentos ou desfaçam equívocos resultantes de desconhecimento mútuo entre estas crianças e o sistema. Com o cuidado necessário para que não representem um papel contraproducente, que acentue as diferenças e que perpetue conflitos, os mediadores podem - nomeadamente em relação ao momento da chegada destas crianças à Escola, bem como em situações de crise - exercer a sua função de mediação, com bons resultados.

Mas também importa reforçar a responsabilidade familiar. Os progenitores imigrantes são, normalmente, verdadeiros heróis em busca de um futuro melhor para os seus filhos. Procuram incessantemente dar-lhes uma vida diferente daquela que tiveram. Não regateiam sacrifícios, trabalhando horas sem fim, em condições normalmente muito adversas, para lhes poderem proporcionar esse destino diferente. Mas essa opção tem, algumas vezes, um preço elevado a pagar, que é, muitas vezes, a ausência da função educadora de pais. Tal como muitas outras famílias não-imigrantes preocupam-se com dar “coisas”, mais do que proporcionar Educação. Esta exige presença, diálogo e acompanhamento dos filhos onde os pais são insubstituíveis.

No domínio da construção da Escola intercultural, o Secretariado Entreculturas tem vindo, através de acções de formação, da edição de materiais pedagógicos, da realização e participação em seminários e congressos, ou da participação em projectos internacionais, a dar uma excelente resposta ao longo dos últimos anos. Este modelo, estabelece, nomeadamente, “um lugar significativo às diferentes tradições culturais e religiosas em todos os programas escolares, nos materiais pedagógicos, no calendário e na decoração escolares, bem como procede a autocrítica constante relativamente às práticas que conduzem determinadas categorias de alunos ao insucesso e a percursos menos valorizados” . Acresce ainda que valoriza a participação igualitária de todos os alunos e assume um papel contra o racismo.

Num outro modelo de intervenção, o Programa Escolhas , em funcionamento desde 2001, com um modelo renovado em 2004 e 2006, tem representado também um importante investimento do Estado português. Com 120 projectos no terreno, envolvendo 40.000 crianças e jovens, este Programa visa o desenvolvimento pessoal das crianças e dos jovens mais vulneráveis, com particular atenção para os descendentes de imigrantes em Portugal, tendo como fim a promoção da sua integração social na comunidade onde se inserem. Fá-lo através de iniciativas diversificadas (apoio escolar, apoio à inserção profissional, ocupação de tempos livres, inclusão digital, inclusão na sociedade de acolhimento) estruturadas a partir das necessidades sentidas pelas comunidades e pelos próprios jovens, com a lógica de projecto. Estas iniciativas visam a criação de reais oportunidades de inclusão no sistema educativo e de formação, a afirmação de um horizonte de futuro, o estimulo a um sentido de pertença e filiação social, uma cultura de auto-estima e o combate a todas as formas grosseiras ou subtis de exclusão.

De grande significado foi também a recente alteração da Lei da Nacionalidade. Em relação aos descendentes de imigrantes que nasceram em Portugal abrem-se múltiplas hipóteses de acesso à nacionalidade portuguesa: desde logo, por via originária automática, para os descendentes de 3ª geração; por via originária por efeito da vontade, para 2ª geração, com pelo menos um dos progenitores com cinco anos de residência legal no nosso país, independentemente do tipo de título que possuem. Mas as possibilidades para as crianças nascidas em Portugal não se esgotam nestas possibilidades. Por naturalização, abrem-se possibilidades de aceder à nacionalidade portuguesa a crianças que tenham nascido em Portugal e que completem o 1º ciclo do Básico, qualquer que seja o estatuto legal dos progenitores. Antes dessa fase ainda pode ser pedida a naturalização, se entretanto um dos progenitores completar cinco anos de residência legal.

Esta é, aliás, uma das alterações mais relevantes: a contagem dos cinco anos de residência legal de pelo menos um dos progenitores ser referenciado não ao momento do nascimento mas ao do pedido de naturalização.

Estes exemplos concretos, dentro e fora do sistema educativo, representam evidências de que é possível dar passos seguros para a inclusão social de crianças e jovens descendentes de imigrantes. É, no entanto, uma tarefa de todos, com particular responsabilidade para os protagonistas do sistema educativo. Aliás, muitos professores souberam dar ao longo dos últimos anos um exemplo notável, com escassos recursos e muita imaginação e dedicação para que as crianças descendentes de imigrantes fossem bem acolhidas nas nossas escolas. Há que continuar nessa linha, desde o jardim de infância até à idade adulta. A coesão social numa sociedade mais justa e com verdadeira igualdade de oportunidades, depende também desta aposta.

1 comentário:

TF disse...

"Queremos sublinhar que não partilharmos de uma visão sistémica em que tudo depende do ambiente e dos sistemas em que o indivíduo se encontra inserido e, por isso, tudo lhe deve ser desculpado, desde que se prove esse contexto adverso." Com a visão sistemica não se pretende a desculpa mas a catalização de elementos bloqueiam ou tornam disfuncional o sistema. Não se pode colocar a resolução de todos os problemas aos ombros da rwesiliencia individual