07 fevereiro 2006

Incendiários

A crise dos cartoons é profundamente perturbadora. Nas suas múltiplas vagas, desde Setembro passado, com a primeira publicação num jornal dinamarquês dos cartoons hostis para com o Profeta do Islão, Maomé, até aos últimos dias de re-publicação sucessiva desses (e de outros) cartoons em vários jornais europeus e de manifestações e ataques a embaixadas europeias em países islâmicos, verifica-se uma escalada irracional e particularmente perigosa.

É evidente que não pode deixar de ser reafirmado que nada justifica a reacção violenta que tem surgido em alguns países de maioria islâmica. Sem ingenuidades pueris, temos consciência que os radicais nos países islâmicos sabem,como incendiários com mestria, aproveitar estes deslizes ocidentais. Usando-os, manipulam as massas em atitudes irracionais e reforçam o seu objectivo: uma guerra de civilizações, acantonando sob a sua influência largas faixas da população que, de outra forma, não seriam mobilizáveis. Sejamos, de novo, claros: a violência que então explode também não é aceitável, nem desculpável.

Mas, sejamos honestos..Apesar do discurso justificativo em torno da liberdade de expressão, a publicação destes cartoons evidenciou três erros graves: por um lado, a agressão à comunidade islâmica através da representação humilhante do Profeta, por outro, a manipulação abusiva de associação do terrorismo ao Profeta Maomé, e ainda, num outro plano, a interpretação errada do sentido da liberdade de expressão. Na raiz desta trilogia de erros estão, entre outros, a ignorância e arrogância, defeitos muito próprios de uma civilização cheia de si própria.

Comecemos pelo facto da ofensa profunda sentida pela comunidade islâmica com a publicação destes desenhos. Parece óbvio que o autor e o editor do cartoon original não terão percebido quão ofensivo era aquele, na perspectiva de uma larga comunidade de crentes em todo o mundo. A incapacidade de se descentrar de si próprio e conhecer mais do Outro, das suas tradições e convicções, e a partir desse conhecimento respeitar o seu ponto de vista, estará na origem desse erro. É um erro clássico nos desencontros entre culturas e civilizações. Actualmente este dificuldade é agravada pela incapacidade mútua de entendimento entre sociedades essencialmente secularizadas e outras eminentemente religiosas. Ambas se olham com incompreensão e desconfiança.

Naturalmente, perante uma ofensa desse tipo - se involuntária – é exigível um pedido de desculpas do autor e aquele deve ser aceite. Mas como justificar neste caso, perante a constatação desse erro – que mereceu até um pedido de desculpas do editor dinamarquês - a repetição consciente e hostil da publicação dessas peças por outros meios de comunicação um pouco por toda a Europa? Chegámos a um infeliz patamar de arrogância e de dolo. Já ninguém pode argumentar que desconhecia o impacto tremendo dessa publicação nos crentes muçulmanos. Conscientemente, com toda a arrogância, repete-se a ofensa, ainda que em nome de um argumento politicamente correcto: a liberdade de expressão. Mas deve-se afirmar um direito, à custa de uma provocação gratuita de milhões de pessoas, nas suas convicções mais profundas? Aceitaríamos nós portugueses, por exemplo, que algum jornal estrangeiro ultrajasse os nossos símbolos nacionais – bandeira ou hino - protegido pelo argumento da liberdade de expressão?

Mais difícil é aceitar que a fusão feita entre terrorismo e Maomé – segundo erro - seja só um produto da ignorância. É abusiva e manipulatória a conexão estabelecida, como seria a ligação entre a figura de Jesus Cristo e a acção da inquisição ou com o holocausto, ainda que nestes fenómenos, de formas diferentes, tenham estado envolvidos cristãos. A esmagadora maioria dos crentes muçulmanos não são membros de movimentos terroristas e são, muitas vezes, as suas primeiras vítimas. Fazer crer largas faixas da opinião pública no Ocidente que Islão=terrorismo é não só um erro objectivo, como se trata de uma manipulação que só beneficia a consolidação de um choque de civilizações que serve os fundamentalistas de ambos os lados. A ignorância difusa sobre a verdadeira génese do terrorismo global e a arrogância de quem se considera uma “civilização superior” torna-se, neste contexto, uma mistura explosiva. São, deste lado, incendiários em campos secos prontos a arder. Desta forma estes protagonistas entretêm-se a lançar o fogo e soprar ventos.

Finalmente, o terceiro erro: a perversão da liberdade de expressão. É evidente que as democracias liberais do Ocidente se construíram tendo como base, entre outros valores, a liberdade de expressão. Esta constituiu uma alavanca dos direitos cívicos, um antídoto de totalitarismos iníquos e um reforço das democracias nascentes. É, no entanto, um valor relativo e está, nesse contexto, indexado a outros valores. Nunca é referencial único. O seu exercício não pode ser desacoplado do “para quê”. É só um meio que pode ser – ou não - justificado pelos fins. Aliás são já aceites restrições à liberdade de imprensa plasmadas na lei, desde o segredo de justiça ao direito ao bom nome.

Por isso, a afirmação da liberdade de expressão como absoluta e “sagrada”, ainda que para fins iníquos, é inaceitável.

Quando não está em jogo a violação de nenhum direito relevante – como não está no caso presente – a difusão na comunicação social de uma informação/opinião que é ofensiva de convicções, crenças e valores de alguma comunidade, a sua justificação ao abrigo da liberdade de expressão não é suficiente. Trata-se sim de um abuso que merece, desde logo, condenação ética e deontológica no âmbito da auto-regulação dos media. Mas se estes não forem capazes de se auto-regular, a sociedade deve expressar sem complexos, uma crítica clara.

É evidente que estes conflitos recentes vão quebrando pontes e afastando margens. Temos, de ambas as partes, semeado ventos: preparemo-nos pois para colher tempestades.

Por isso, esta crise foi(é) particularmente grave.

Num tempo difícil como o que vivemos, cheio de perigos e armadilhas, é fundamental um esforço colectivo de diálogo e de construção de pontes entre culturas e religiões. Há, da parte dos principais protagonistas individuais e institucionais, uma irrecusável responsabilidade social para a promoção do diálogo intercultural que urge cumprir. Conhecer o outro, respeitá-lo na sua especificidade, cultivar não só a tolerância como o afecto pela diversidade, são alguns tópicos desse diálogo. Mas para começar, convêm não agredir gratuitamente aquele com quem temos que nos sentar à mesa.

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