23 abril 2006

Lições do massacre de Lisboa

Cinco séculos depois, o massacre de Lisboa não ficou, felizmente, remetido ao silêncio disfarçado. Os factos foram recordados dolorosamente: duas a quatro mil pessoas, suspeitas de permanecerem fieis à tradição judaica, apesar de convertidos à força ao cristianismo (cristãos-novos), foram trucidadas numa onda de loucura colectiva que atravessou a cidade de Lisboa. Em três dias – 19 a 21 de Abril de 1506 – num movimento quase espontâneo, gerado por vozes fanáticas que exploraram um sentimento anti-semita pré-existente, libertaram-se demónios que chacinaram sem dó, nem piedade, homens, mulheres e crianças. A propósito deste acontecimento, para além de tudo o que foi dito, é útil actualizar a nossa reflexão para o século XXI.

Combustível. Comburente. Chama.

O populismo necessita, tal como o fogo, de combustível, comburente e calor. Esses elementos constituintes do “triângulo” do fogo precisam estar presentes simultaneamente para que o incêndio ocorra. Façamos o paralelismo: nessa altura, o combustível era representado pelas condições sociais desfavoráveis de crise grave, induzida pela seca, com consequente fome, e agravada pela peste. Ontem, como hoje, o populismo só coloca multidões irracionais em movimento quando beneficia de um contexto de crise que lhe sirva de combustível. Sem ela, não arde. Por isso, sempre que se está perante crises de grande desemprego e pobreza alargada, todos os alertas devem estar monitorizados para este risco de “incêndio” social.
Mas a crise por si só não é suficiente. Precisa ainda de comburente. No século XVI, nos tristes acontecimentos de Lisboa, o contexto de anti-semitismo favoreceu em muito a tragédia. Qual oxigénio para o incêndio social, o preconceito em relação ao “outro” – seja ele estrangeiro, judeu ou negro – é essencial para que a combustão se dê. A existência de índices elevados de xenofobia e de racismo, o desenvolvimento de diferentes expressões de choque de civilizações e o medo instilado face a hipotéticas ameaças protagonizadas por um “outro” que nos é apresentado como desumanizado, devem constituir outro eixo de alerta.
Finalmente, na metáfora do fogo, o papel dos que instigaram à selvajaria. Aparentemente dois religiosos terão incendiado os lisboetas com apelos ao morticínio dos cristãos-novos. Quando perante elevadas cargas de combustível social – crise, desemprego, pobreza – e de comburente – diabolização de um qualquer “outro” – alguém lança uma chama, quase sempre se produz uma grande explosão. Foi isso que aconteceu em 1506, na capital do reino e que custou a vida a milhares de pessoas. E que se pode reproduzir sempre que o triângulo do fogo social está completo. Por isso, vozes populistas, um pouco por toda a Europa, constituem um perigo sério enquanto incendiários sociais que devemos ter em conta.
Ora, todo este exercício metafórico deve ser olhado também, tal como na prevenção e combate ao fogo, na atitude sensata de lutar contra a coexistência e potenciação destes três factores, no mesmo tempo/local. A prevenção faz-se, portanto, combatendo o preconceito que é comburente, a crise que é combustível e os argumentos dos incendiários.

O perigo de lideranças ausentes e de políticas erradas..

Sem ambições de um extremo rigor histórico, parece ainda assim viável olhar este acontecimento também pela perspectiva das lideranças. À data dos acontecimentos, D. Manuel encontrava-se fora de Lisboa. Em grande medida, essa ausência terá favorecido a dimensão e a duração do massacre. É certo que assim que soube, regressou de imediato a Lisboa, foi firme no restabelecimento da ordem pública e muito duro na aplicação de penas aos instigadores: ambos os religiosos foram condenados à morte. Não sendo de somenos importância tal reacção, ela revelou-se tardia e nada pôde remediar. Lideres ausentes em tempo de risco de incêndio social constitui um factor adicional que favorece a catástrofe.
É útil também nesta reflexão registar que os acontecimentos de 1506 ocorrem sete anos depois de um das primeiras políticas assimilacionistas desenvolvidas sistematicamente em Portugal: a conversão forçada dos judeus ao cristianismo. Por pressões externas e por desejo de anulação de diferenças potencialmente ameaçadoras, a regra assimilacionista transformou milhares de judeus em cristãos-novos. Ora o interessante verificar nesta viagem pela memória é que essa opção política não anulou a hostilidade perante o “outro”; ou seja, não foi pelo facto de serem obrigados a tornarem-se iguais na fé que os “outros” deixaram de ser ostracizados. Pelo contrário, as desconfianças acentuaram-se e o desenlace foi o conhecido. Ontem, como hoje, as políticas assimilacionistas não anulam a desconfiança perante a diferença ainda que esta aparentemente desapareça. Pelo contrário.

Quem perde mais é o perseguidor...

Um articulista - Ferreira Fernandes no Correio da Manhã - sublinhava por estes dias, a propósito do massacre de Lisboa, um outro eixo fundamental de análise: o auto-prejuízo causado a Portugal por todo o processo de hostilização e expulsão dos judeus. Como recordava Landes, na sua História da riqueza e da pobreza das Nações, citando o exemplo de Portugal e da expulsão dos judeus, “em questões de intolerância a maior perda é a que o perseguidor inflige a si mesmo”. O êxodo das famílias judaicas de Portugal, para destinos como a Holanda, causou danos significativos no capital humano e financeiro do Estado português. Um século depois, o P. António Vieira procura, nesse domínio, corrigir o erro e convencer o Rei e a Igreja da vantagem do regresso dos judeus a Portugal, pois o país precisava deles para o seu desenvolvimento. Em vão. Essa ousadia viria mesmo a custar-lhe alguma suspeição que o levará mais tarde à condição de réu da inquisição.
A consciência de que o dano da perseguição cai - para além das vitimas que o sofrem directamente - também sobre o perseguidor é um importante elemento a ter em conta. Para além da culpa moral provocada por gestos ignóbeis, soma-se o dano material sobre os interesses mais directos da sociedade que persegue. Hoje, em cenários de perseguição, ainda que mais suavizados, há que não esquecer o quanto perde o perseguidor.

A importância do pedido de perdão.

Em 2000, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, no mesmo local onde se iniciou o massacre, pediu publicamente perdão, em nome da Igreja, por todas estas perseguições desencadeadas sob a bandeira da fé, ainda que muitas vezes nada com ela tivessem a ver. Esse gesto nobre e digno, aponta uma outra pista de reflexão. Se é certo que “errar é humano”, assumir os seus erros, pedir perdão e alterar o futuro em função dessa consciência ética, não é tão comum como seria desejável. Nesse sentido, diferentes sociedades, em diferentes momentos da sua história terão cometido injustiças deste e de outros calibres. São poucas as que estarão isentas de nódoas na sua História. O acerto de contas com a memória das vítimas, exige que todas elas sejam capazes de chegar ao perdão. Só através dele, pedido e aceite, se poderá reconstruir uma relação justa e equilibrada, sem passivos ocultos ou sentimentos reprimidos.


A ver o blog a Rua da Judiaria, de Nuno Guerreiro.
Para ler, o Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler

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