28 novembro 2005

Identidade e nacionalidade nas crianças e jovens descendentes de imigrantes

Apesar da discussão legítima se se deve falar de segunda e terceira gerações de imigrantes, no pressuposto que essa abordagem pode ser perversa por cristalizar um estatuto que perdura no tempo, mesmo para aqueles que não imigraram – já nasceram no país de acolhimento – é indesmentível que este grupo de crianças e jovens tem vulnerabilidades especiais que devem ser consideradas, tendo em vista a sua redução e anulação. Não defendemos, no entanto, que essa anulação de desvantagens arraste consigo a eliminação da sua memória cultural específica. A boa integração exige, em simultâneo com a plena cidadania e exercício da igualdade, que estas crianças e jovens possam manter, com orgulho, as suas origens, sem as enterrar.

É evidente, no entanto, que esse equilíbrio é difícil e da sua ausência decorrem algumas das mais tipificadas dificuldades de integração existentes. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão difícil de resolver que é ainda agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social em relação à sociedade de acolhimento, seja na recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de sub-culturas importadas.

Neste processo de crise identitária, é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas, essa exclusão, desde o berço, não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que encontram, muitas delas agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – às vezes, desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular. Ao mesmo tempo, a expressão dessa identidade rebelde é factor de reconhecimento inter-pares, dentro do grupo de referência, e de remuneração afectiva que estimula uma auto-estima quase sempre inexistente. Estranhamente - para o senso comum - esse mecanismo do “quanto pior melhor”, de violência sem móbil e de espiral em direcção a um abismo constitui-se, com uma lógica muito própria, como auto-justificação suficiente. Perante ela, saibamos reconhecer onde está a sua origem e não nos deixemos impressionar só pelo seu efeito.

Uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música têm sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro, a política ou a cultura fossem espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.

A questão da nacionalidade

Directamente ligado à questão identitária está o acesso à nacionalidade portuguesa que tem simultaneamente um impacto simbólico e consequências práticas. Como é conhecido, existem duas abordagens distintas: o jus sanguinis em que o acesso à nacionalidade se dá por descendência de um nacional (e.g. é português, o filho de um português) e o jus solis, em que o acesso da nacionalidade é aberto a todos aqueles que nasceram num determinado território, independentemente da nacionalidade dos pais. A aplicação destes modelos poder ser misto e com peso relativo diferenciado de cada um deles.

Estranhamente, Portugal adoptou, no passado recente, o modelo muito marcado pelo jus sanguinis aproximando-se, por exemplo, do modelo identitário alemão com o qual muito pouco temos a ver. É óbvio que esta opção está contextualizada num determinado período histórico – o pós-descolonização – mas deveria, trinta anos depois, ser repensada essa política.

Que sentido faz recusar – ou, no mínimo, dificultar significativamente - a nacionalidade a crianças que nasceram e sempre viveram em Portugal, comunidade que se constitui como o seu espaço de socialização e de pertença?

Parece evidente que esta opção produz, antes de mais, condições para uma exclusão e rejeição da sociedade que os viu nasceu e para os quais, não é mãe, nem sequer madrasta. Simplesmente, não os perfilhou.Somos, por isso, claramente defensores da virtude do modelo jus solis, opcional por parte dos progenitores em situação legal, que não sendo perfeito, tem um balanço muito mais positivo do que a versão oposta.

A nova Lei da Nacionalidade vem ao encontro desta preocupação. Em relação a crianças que um dos progenitores já nasceu em Portugal, o jus soli é automático, independentemente da situação legal do progenitor. É um grande avanço.
Também nos parece razoável que, por prudência e para construção de um consenso social e político alargado, se considere - como o faz a nova Lei da Nacionalidade - um período de legalidade de pelo menos um dos progenitores que, não tendo nascido em Portugal, possa evidenciar uma ligação mínima ao país de acolhimento e eventual futura pátria do seu filho(a).
Dessa forma, se cultivará desde criança, caso seja essa a vontade da família, um sentimento de pertença nacional e um modelo de comunidade mais diversificado e cosmopolita. Mais do que reforçar sistematicamente a importância do lugar de onde viemos, passaríamos a valorizar, os que aqui estamos, para onde vamos.
É esta a esperança que transporta a nova Lei da Nacionalidade.

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