Desde os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos, bem como os que se seguiram em Madrid e em Londres, a crítica do multiculturalismo saltou para a agenda pública, como se nele residisse a causa do novo terrorismo internacional ou das tensões étnico-culturais na Europa. Destaca-se nessa crítica, que as sociedades ocidentais são excessivamente tolerantes e permissivas na aceitação no seu seio da diferença cultural e religiosa, deixando até medrar radicalismos que lhe são hostis. Importaria, segundo esta perspectiva, recuar nessa abertura e estabelecer outros referenciais mais fechados e, presume-se, mais uniformes em termos religiosos e culturais. Esta tendência tem vindo a consolidar-se entre o “politicamente correcto” como se fosse inevitável e urgente. Ora tal leitura é precipitada e perigosa.
Equívocos perigosos
Desde logo, este debate está distorcido em vários eixos. Ainda que se tente dissimular, o que perturba os europeus não é o multiculturalismo em si, mas as questões que uma leitura minoritária, radical e pervertida do Islão tem colocado nos últimos anos. É importante perceber que não é a diversidade cultural que efectivamente está em causa, mas o radicalismo fora-da-lei. E este, qualquer que ele seja, está fora do âmbito do multiculturalismo, que se constrói no respeito escrupuloso pelo quadro legal da sociedade onde se desenvolve. Para lá da Lei, não existe multiculturalismo.
Outro equívoco significativo resulta do facto de que nenhum país europeu - com excepção da Suécia e, parcialmente, a Inglaterra - adoptou consistentemente uma política multiculturalista. Os europeus culpam, assim, um modelo que efectivamente não praticaram. Os únicos exemplos sérios de multiculturalismo, enquanto política oficial do Estado, estão fora da Europa (Austrália e Canadá) e, curiosamente, estão longe desde debate. É a partir deles – e um pouco da experiência sueca – que se pode discutir se o modelo multicultural funciona ou não.
Por outro lado, importa perguntar se nos países que adoptaram uma outra política de gestão da diversidade cultural - como o assimilacionismo dos franceses ou diferencialismo dos alemães - estes problemas não se colocam ou estão resolvidos. A resposta é evidente: colocam-se e não estão resolvidos. E, por aquelas vias, dificilmente se resolverão.
O multiculturalismo como via exigente
Num mundo globalizado, de fronteiras ténues e com uma mobilidade humana crescente a presença da diversidade cultural não é uma opção: é uma realidade incontornável. Em 2001, a UNESCO, através da sua Declaração Universal da Diversidade Cultural sublinhava que “em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.”[1].
O multiculturalismo é, de todas as opções de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua. Este modelo permite às minorias étnicas a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da sua cultura ancestral, especialmente língua e religião, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade. De igual modo, defende a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos ou religiosos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e da discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.
Mas esta afirmação de princípios é só uma face da moeda. Há outra sempre presente no verdadeiro multiculturalismo. Tomando a Austrália como exemplo, o modelo multicultural exige a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluindo a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional, igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem os seus valores. No Canadá, entre os três objectivos essenciais do multiculturalismo está a unidade nacional (para além da igualdade e a participação social). Portanto, enganam-se aqueles que julgam ver no modelo multicultural o expoente máximo do laxismo e a origem da falta de coesão social.
Nenhum modelo é perfeito e definitivo. O multiculturalismo pode e deve evoluir. Uma direcção possível– o interculturalismo - acentua o seu carácter interactivo e relacional. Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento e miscigenação cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. Muito mais do que a simples aceitação do “outro” a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural propõe o acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro.
Assim importa, mais do que nunca, consolidar e aperfeiçoar o modelo de diálogo intercultural. Se não o fizermos podemos estar a destruir as pontes que nos farão muita falta no futuro próximo. Porque para isolar os radicalismos, precisamos mais de pontes do que abismos.
[1] Art.2 º da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.
in PÚBLICO, de 24 de Agosto de 2005
28 novembro 2005
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